Um contínuo processo de normalização vem destruindo as características do falar que efectivamente existiu neste recanto português que é Riba Côa. Fruto desse processo a pronúncia estabilizou ao redor da palavra correctamente escrita e na sua exacta expressão oral. A fala rude e imprópria foi ganhando regras e adquirindo a devida sonoridade.
Vêm de longe as influências que contribuíram para essa padronização do falar, mas ter-se-á acentuado com a expansão do sistema de ensino e a instalação de escolas na generalidade das povoações e também com a saída dos jovens para o cumprimento do serviço militar obrigatório. Na escola aprendia-se a ler e a escrever o português perfeito, seguindo à risca os manuais, e isso reflectia-se na fala, que passava a ser mais cuidada. Na vida militar os jovens beirões eram ridicularizados pela pronúncia e pelo léxico que utilizavam e, no seu regresso aos campos, vinham a falar diferente e a censurar aos familiares e amigos o que a eles igualmente fora censurado. De entre os outros factores da nivelação linguística conta-se a sucessiva instalação de postos da Guarda Fiscal nas povoações da primeira linha de fronteira. Das guarnições faziam parte militares que não eram originários da zona e os muitos militares raianos que integravam essa força tinham de submeter-se a um curso na incorporação, e podiam permanecer largos anos em terras longínquas até conseguir colocação no rincão natal. Também os párocos na Igreja, e fora dela, desempenhavam esse papel nivelador da língua. Ainda que geralmente oriundos de aldeias próximas às que pastoreavam, os eclesiásticos eram sujeitos a longa e cuidada formação nos seminários, sendo privilegiados conhecedores da língua portuguesa, cujas formas de rigor passavam a transmitir.
Mas a grande mudança deu-se mais modernamente, sobretudo pela penetração nas aldeias de poderosos meios de comunicação, como os jornais, a rádio e, sobretudo, a televisão. A população foi ficando conhecedora de que havia formas mais finas de falar, tomando consciência que a sua expressão era uma maneira algo rude de comunicar. Além do mais, houve a vaga de movimentos migratórios para o Litoral e para fora do País, com um regresso continuado à aldeia no tempo de férias, sendo o emigrante portador de novos conhecimentos, de outra forma de falar. Mais uma vez o íncola que ficara agarrado ao seu terrunho, era ridicularizado: que continuava labrego, um autêntico troglodita, usando expressões ásperas e rudimentares pouco condizentes com o «português de lei».
Depressa se acentuaram as diferenças nas falas, principalmente entre os velhos e os mais novos que haviam saído a correr mundo, ou que frequentavam a escola, ou que vinham do seminário. Começou a usar-se a designação de fala charra, achavascada, achambuada, chamorra ou à pastora, para as formas de expressão mais antigas, querendo esses mesmos termos dizer «falar mal». Já o «falar bem», dentro da norma, ou a isso aproximado, era designado por falar grave ou falar à política, o que não era acessível a todos.
Podemos considerar que o processo de normalização linguística a que ficou sujeito o povo de Riba Côa e do geral das regiões de Portugal (o fenómeno aconteceu um pouco por todo o lado e num tempo aproximado), levou ao triunfo da língua portuguesa, aproximando-se todo o país às suas regras convencionais, perdendo-se porém a riqueza da suas particularidades regionais e locais. A tendência para a uniformidade fonética ocorreu em relativamente poucos anos, num processo que podemos considerar acelerado, ao qual ninguém ficou indiferente. As pronúncias muito acentuadas e muitas das antigas designações locais foram sufocadas pelas formas escorreitas da língua oficial que o mestre-escola passou a ensinar aos meninos das aldeias. Podemos até afirmar que a normalização linguística se ficou primeiramente pela aproximação fonética, naquilo que verdadeiramente foi possível nivelar, no restante, ou seja, na morfologia e na sintaxe as evoluções foram menos visíveis, mantendo-se uma forma de falar, onde se destacou um léxico rico em expressões locais que não tinham uso divulgado noutras zonas do país.
Mas a aldeia deixou de ser estar fechada sobre si mesma, com o adro como centro do mundo, e abriu-se a um vasto cosmos que progressivamente a invadiu, fazendo-a aperceber-se da sua pequenez.
A uniformização passou com o tempo a ter consequências a todos os níveis, perdendo-se mesmo parte da variedade lexical. Digamos que restou, contudo, uma boa parte do vocabulário e uma que outra expressão fonética mais arcaica, de forte incidência local, às vezes agarrada apenas a habitantes mais antigos.
Paulo Leitão Batista, «O falar de Riba Côa»
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