Irei contar neste espaço do Capeia Arraiana algumas estórias verdadeiras vividas no Vale da Senhora da Póvoa, as quais me chegaram por duas vias.

A minha Tia Ana (irmã do meu Avô) nasceu em 1886 e faleceu com 99 anos. Era uma mulher perspicaz, alta e forte, de quem eu confesso que tinha medo, uma chapada dela matava-me de certeza e por isso tive de aprender a correr muito. Juntamente com outras irmãs, irmãos e sobrinhos, naquelas noites de Inverno gélido características da região, ficavam à roda do lume de chão, com as panelas de ferro onde se fazia o comer e normalmente dependuradas pelas trempes negras de fumo que surgiam dos interiores já bem encarvoados da lareira. Foi nessas noites que ela me contou algumas estórias que ainda recordo.
Outra fonte foi o Ti Manel Adriano era homem alto, corpulento, mas perneta. Vivia de fazer vassouras e vendê-las ao povo. Tinha uma perna de pau e apoiava-se num grande e ameaçador bordão. No Inverno usava um grande e pesado capote amarelado, que mais parecia um cobertor de pápa. Quando se ouvia o toc-toc da perna postiça nas pedras da Rua Direita já se sabia que ele ia para casa. Era então que a moçada ia atrás dele injuriando-o e atirando-lhe pedrinhas. Ele então virava-se para trás, fazia zunir no ar o bordão em círculo e lançava um grito pior que um rugido de leão:
– Arreda que vai de pósta!
E os passarinhos em forma de gente fugiam chilreando pela ladeira da Igreja acima…
Eu, ou por lhe ter medo ou por pensar que fosse contar ao meu Avô (o tenente Cameira, então Presidente da Junta de Freguesia) que eu também o «judiava», o que originaria as inerentes sevícias, nunca me meti com ele. O que me valeu ser pessoa, melhor dizendo menino, com elevado estatuto de confiança junto de si.
Daí que ele me contou muitas das estórias que guardava na memória. As narrações aconteciam numa escadaria de recanto que havia do lado esquerdo de quem desce a Rua Direita, antes do Chafariz. Mas algo insólito aconteceu um dia comigo e com ele. Ainda hoje não sei os porquês, uma tarde o Ti Manel Adriano pede lá em casa que me deixem ir jantar à casa dele…
Vestiram-me um calçanito branco ou beje e lá fui todo lampeiro, até levei uma garrafa de vinho, lá na nossa casa havia várias pipas cheias.
O Ti Manuel Adriana fez-me sentar num mocho (esses banquinhos baixos, feitos de folhas grossas de cortiça) enquanto o crepitar da lareira fazia o guisado de carne. Assim foi, comi daquilo à farta, sabe melhor na casa dos outros e ainda mais por insistência dele. Pelas 11 da noite, sonolento, voltei para casa e no outro dia havia risada da grande por parte das minhas primas!
É que na retaguarda dos meus calções estava desenhado a negro da fuligem o tal mocho onde me sentara na casa do Ti Manel Adriano!
Decorriam os anos de 1940 e havia imensas convulsões políticas, sociais e bélicas por essa Europa. Acabara uma guerra que fora um balão de ensaio para outra bem mais mortífera.
Em Portugal reinava esse Cônsul déspota de nome Salazar, que urdia planos camaleónicos – ora autorizava os ingleses e americanos a utilizarem os Açores e a Madeira, para apoio logístico de aviões e barcos carregados de bombas nos bojos, ora vendia ao III Reich de Hitler e Goering, alguns produtos alimentares em conserva e determinado minério, matéria prima necessária para os fabrico de blindados Panzers para o Africa Corps do nazi Himmler no Norte de África.
Esse minério – o volfrâmio – sempre o houve no Vale da Senhora da Póvoa, já os Romanos, Celtas e Mouros sabiam disso!
Houve um conterrâneo do Vale de Lobo (em 1955 mudou o nome para Vale da Senhora da Póvoa), o Ti Valdemar Carolo (nome fictício), que passava a vida apascentando as suas cabras um pouco mais acima da Ermida da Senhora da Póvoa, em Sortelha-a-Velha, nos contrafortes de cá da Serra da Opa, vigiando-as não fosse o demo empurrá-las para dentro de uns buracos que por ali havia tapados por silvas. O rebanho era controlado por estridentes assobiadelas e o zurzir sonante das varas de marmeleiro e por um possante cão rafeiro, que malhava dentadas nos animais mais ariscos.
Tornou-se dono desses tais buracos onde os antigos extraíam essa «coisa» pesadota, bem escura e de cheiro pestoso.
Há uma estória – será lenda? – em que um dia o Ti Valdemar terá visto uma alcateia de lobos descer a encosta da Serra da Opa, vindo dos lados do Anascer. Tendo enxotado as suas cabras em direcção à aldeia, atraiu para si esses predadores, empoleirando-se no alto de uma árvore e ali permanecendo dois dias e duas noites, até que os bichos abalaram, cansados de tanta espera…
Será que vem daí o nome «Vale de Lobo»?

«Estórias de um filho de Vale de Lobo e da Moita», crónica de José Jorge Cameira
Esta e outras «estórias» que se seguirão nesta coluna serão contadas semanalmente pelo José Jorge Cameira, um filho do Vale da Senhora da Póvoa (que noutro tempo se chamou Vale de Lobo) e da Moita, que está radicado na cidade de Beja, onde vive e trabalha há muitos anos.
jcl e plb
JJC,
O que peço é que tu escrevas a versão da tua adolescência na próxima crónica que escrevas para o Capeia.
Ou que a insiras aqui mesmo, a seguir a este meu comentário.
Atenção: estamos a falar da história do tempo do volfrâmio em que pessoas do Vale compraram ou quiseram comprar o comboio.
Força!
JCM : essa versão que eu reproduzo da tradição oral da minha Aldeia sairá como 2ª Parte (amanhã?) daquela 1ª q tu tiveste a paciência de lêr. Já agora…tudo o que leres sobre o q vou escrevendo – por comodidade e preguiça boa por aqui adquirida – são retratos verdadeiros do que vi e ouvi….assim me deiam espaço na Capeia para tanto ! Um abraço !
JCM : um pouco atrasado venho perguntar se leste a “minha versao”….
José Jorge,
Bem-vindo às lides…
Um dia perguntaste-me: «onde devo escrever a versao muito perto da verdade sobre o assunto da “compra do comboio por jovens” do VSP? É bastante diferente, tem estórias diversas da estória central, que gira à volta do volframio. Foi uma recolha que fiz junto de pessoas idosos que coincidiram na versão….posso mandar por mail? ou escrevo-a onde?
Aqui tens a minha resposta: escreve a tua próxima crónica no ‘Capeia’ sobre essa historieta.
Isso interessa-me especialmente.
Um amigo do Vale já me emendou e eu publiquei aqui https://capeiaarraiana.pt/2012/05/07/casteleiro-ethos-diferente-da-raia/, no final deste texto.
Agora fico à espera da tua versão.
Certo?
manda por mail: JJORGEPAXJULIA4@HOTMAIL.COM
…mas se entenderes fazê-lo aqui…sem problema nenhum… a “casa” é tua. A minha versão foi colhida na minha adolescencia (segurei-a por q tenho boa memória) e não tenho nenhum motivo para não a manter, pois ouvi-a com os meus ouvidos, sei o nome do “actor”, onde vivia e conheço os descendentes.Um abraço
Caro José Jorge Cameira,
Gostei imenso destas tuas “estórias” e de te ver como colaborador do Capeia.Vejo que estás em grande forma- a foto não engana- e que continuas com grande sentido de humor. Desde aquela visita que me fizeste no sec. passado (talvez no limiar do 3º milénio-creio eu-) nunca mais soube nada de ti. Porém, a avaliar pelo que aqui acabo de ver, Pax Julia só pode significar proximidade com Ossónoba (são só 150Km) , continuação por terras alentejanas e vindas para uns bons mergulhos às quentes águas algarvias nas tuas merecidas férias de verão. Espero pois, que quando por aqui passares se repitam os encontros com o teu velho amigo e companheiro de longa data das lutas da CX e dos bons petiscos por terras da Pax Julia, Zé Lebrinha e não só. Um grande abraço, boas “estórias” com a tua inconfundível e muito própria maneira de ver as coisas e com o teu grande sentido de humor .Continua sempre assim em grande forma como nos bons velhos tempos de galã e menino preferido das meninas mais bonitas do colégio nos bailes do Grémio/cinema e nas terras de Vale de Lobo onde eu cheguei a ir nos aludidos tempos da tua crónica.. Tens aqui um leitor interessado e contigo, a blogosfera e o Capeia ficam ainda mais enriquecidos.
Um abração.
AC
Ò Corte, mas que surpesa! Sei que te reformaste da CGD, é por isso que a parte jurídica ficou como está, os bons juristas vão-se….Olha, lembro-me bem daquele pratinho de feijanito…dobrada, que comemos no Cortiço aqui de Beja (hoje é loja de chineses)…pois bem: voltaste sozinho a comer um 2º prato, cum catano!! Vai lendo, parece que na 4Feira há mais. Tenho muitas …e tudo verdadeiro. Ficção é pra os (des)governos…
…eu tambem serei uma leitora assídua tua se bem que atenta!!! Esta “estória” (como tu escreves..) já me a tinhas enviado!!! Lembro-me do Ti Manel Adriano e da sua “perna de pau”…(hoje seria um gelado…).
Mordaz como sempre…mas é bom ler-te!!! Beijo
Mélita…ainda bem q tbm te lembras do Ti Manel Adriano! assim, deste uma pincelada de autenticidade na minha narração….Pena que nao possa publicar a MELHOR delas, lembraste? Vá, bjsss
Não publicas não!!! Essa “estória” já está conversada há muitoooooooooooooo…voltamos a zangar-nos!!! Publica mais…eu gosto de te ler…e este Alvaro Corte é o que eu penso ser??? Bêjus (alentejanos…)
Caríssimo primo:
Vieste para ficar ou será colaboração esporádica? Seja como for o teu sentido mordaz, a maneira muito própria de ver a vida e as coisas, aliadas a um permanente sentido de humor, serão concerteza uma mais valia para o “Capeia”. Não é engraçado quem quer, por muito que alguns tentem sê-lo. Serei um dos teus leitores atentos e interessados. Um abraço.
Carlos Manuel: O Paulo Leitao Batista informa no fim da minha estória que sairá mais na 4ªfeira. Cá por mim, tenho estórias (sem H) todas as 4ªfeiras do resto da minha vida!! Vá, porta-te MAL !!!
Onde está escrito 32 de Agosto, deve ler-se 2 de Agosto
José Jorge.
Vale da Senhora da Póvoa nasceu no dia 32 de Agosto de 1957. Se tens dúvidas, consulta o Dcreto-Lei publicado no site do Vale da Senhora da Póvoa no ítem “Junta de Freguesia”.
Abraço
Américo Valente
Obgd Américo, anotei….tu ja me tinhas dito essa data por telefone, mas esqueci ….a idadeeee !!!
José Jorge…bom mesmo ler as tuas estórias! Grande amigo da Casa do Castelo, agradecemos que continues a partilhar connosco as estórias simples que ainda guardas na tua memória! Do modo como escreves raramente o sorriso abandona o nosso rosto! Saudações amigas!
Obgd Natalia…sempre generosa!