Para concluir este novo conjunto de crónicas, voltemos às viagens, retomando a prática já aqui seguida em vários outros artigos sobre Roma, Veneza, Nova Iorque, Istambul, etc.
Numa longa e diversificada viagem pelo Norte de Espanha e pelo Sul de França, visitei cidades fascinantes como Bilbau, Barcelona, Carcassonne, Nimes, Arles, Aigues-Mortes e Avignon. E locais de grande beleza natural ou de extraordinária riqueza patrimonial, como os deslumbrantes parques naturais das duas vertentes dos Pirenéus, ou os mosteiros de Poblet, Monserrate e Ripoll, na Catalunha, ou ainda a Pont du Gard, essa grandiosa ponte-aqueduto, obra-prima do génio construtor da Roma antiga.
Os leitores adivinham facilmente neste roteiro uma fonte abundante e cristalina de temas, não para uma mas para várias crónicas. Hoje, porém, fiquemo-nos pelo tema já anunciado no título deste artigo: Avignon, a bela cidade da Provença, senhora de um riquíssimo património arquitectónico e de uma fervilhante vida cultural.
O nome desta cidade traz-nos de imediato à memória (pelo menos aos mais velhos) duas reminiscências dos bancos do liceu – o Grande Cisma do Ocidente (com a Cristandade dividida na obediência a dois papas, um a residir em Roma e o outro em Avignon) e uma cantiguinha que aprendíamos nas aulas de Francês («Sous le Pont d’Avignon… on y danse, on y danse…»). A ponte de que fala a canção é a Pont Saint Bénézet, sobre o Rhône, uma lindíssima e romântica construção medieval, arruinada desde o século XVII, que termina a meio do rio. Alguns dos meus leitores, talvez associem também esta cidade ao famoso quadro de Picasso «Les Demoiselles d’Avignon». Todavia, neste caso, as tais «demoiselles» não eram de Avignon; tratava-se de gentis meninas das «casas de passe» da Calle de Avignon, em Barcelona. Quanto ao facto de Avignon ter sido, durante mais de uma centena de anos – «a outra Roma» – isso obriga-nos a lançar «um olhar sobre a história».
Em 1305, no conclave de Perugia, foi eleito papa o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, que adoptou o nome de Clemente V e seria o primeiro dos papas de Avignon. O novo pontífice, ao contrário do que era habitual, não foi para Roma, optando por ser sagrado em Lyon e fixar residência em Avignon (1309). No entanto, seria apenas o seu sucessor, João XXII (1316-1334), que tinha sido bispo desta cidade, quem viria a declarar explicitamente que não sairia de França, decidindo instalar formalmente a “Santa Sede” na “nova Roma”. Durante os pontificados de Bento XII (1334-1342), Clemente VI (1342-1352) e Inocêncio VI (1352-1362), a residência dos Papas, em Avignon, transformou-se progressivamente num autêntico palácio-fortaleza. A própria cidade recebeu, entre 1355 e 1370, uma fortíssima cintura de muralhas, ainda hoje praticamente intacta (se bem que restaurada).
Em 1367, Urbano V (1362-1370) tenta o regresso a Roma, mas em breve concluiria que a cidade do Tibre se tinha tornado perigosa para um «papa gaulês» e regressa a Avignon. Sucede-lhe Gregório XI (1370-1378), o último dos «papas franceses», que transfere de novo a cadeira de Pedro para Roma, em 1376. Em 1378 foi eleito um papa italiano, Urbano VI, bispo de Bari. Urbano VI propôs uma profunda reforma da hierarquia eclesiástica que, porém, suscitou uma violenta recusa. A sua eleição foi declarada nula pelo Sacro Colégio e, pouco depois, procedeu-se a nova escolha. O eleito seria o cardeal Roberto de Genebra (Clemente VII), que optou por se fixar em Avignon, acompanhado pelo Colégio Cardinalício rebelde. Entretanto, em Roma, Urbano VI recusa-se a resignar e nomeia um novo Colégio. Surgiam, deste modo, duas «obediências» e a Igreja dividia-se: era o Cisma.
Esta dramática ruptura surgida no seio da Cristandade ocidental acentuou clivagens político-militares já existentes: alguns países, como a Inglaterra (envolvida na guerra a que depois se chamaria dos Cem Anos, contra a França), ou Portugal (aliado da Inglaterra) obedeciam ao papa de Roma, enquanto outros, como Castela ou a própria França, obedeciam ao papa de Avignon.
Finalmente, em 1414, reuniu-se o concílio de Constança, onde se tentou ultrapassar a cisão. O objectivo era o de destituir os dois papas rivais e proceder a uma nova eleição. Três anos depois, em Novembro de 1417, a escolha de Martinho V, um italiano da nobre família dos Colonna, pôs fim ao Grande Cisma do Ocidente (lembremos que, nos meados do século XI, tinha ocorrido outra cisão na Cristandade, o Grande Cisma do Oriente, que originara a Igreja Cristã Ortodoxa). No entanto, apesar de reunificada, a Igreja Católica sairia fragilizada desta grave crise e a autoridade papal ficou enfraquecida. Cem anos depois, em 1517, iniciar-se-ia a rebelião de Martinho Lutero, que conduziria a uma nova cisão, que ainda hoje permanece.
A prolongada estadia dos pontífices marcaria definitivamente Avignon. O Palácio dos Papas e a impressionante muralha que cerca a cidade dominam a paisagem urbana. Tal como sucedeu com muitos outros monumentos, a residência papal não conseguiu atravessar incólume o passar dos séculos. A iconoclastia da Grande Revolução Francesa de 1789 deixou no edifício profundas marcas negativas, posteriormente agravadas pela longa ocupação militar. Pelo meio, um terrível incêndio danificou quase irremediavelmente algumas zonas do Palácio, que seria sujeito a um restauro nem sempre respeitador das origens.
Mas o leitor, se for a Avignon, verá que «a outra Roma» possui muitos outros motivos de interesse. Visite a Catedral de Notre-Dame-des-Doms; e a flamejante Igreja de Saint-Pierre; e a Igreja de Saint-Agricol, com a sua fachada gótica e o seu admirável retábulo dos Doni; ou os muitos museus da cidade; e perca-se nas praças e pracinhas com acolhedoras esplanadas e nas ruelas pontuadas aqui e além por grupos de rua que tocam música de encantar; depois, atravesse o Rhône e jante na esplanada de um dos restaurantes da «Ilha», ao entardecer, com o rio e a velha cidade a ficarem progressivamente dourados pelo pôr-do-sol. Finalmente, se for tempo disso, à noite assista a um dos espectáculos do Festival Internacional de Teatro de Avignon, no grande palco instalado na Cour d’Honneur do Palácio dos Papas. E, estou certo disso, quando partir, prometerá voltar.
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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