Aventurei-me uma noite na travessia das terras raianas entre Aldeia do Bispo e Fóios, tendo por coisa feita fazer chegar a Navesfrias quatro sacas de café e dali tirar uma carga de pana e de riscado para um meu freguês de Trancoso.
Segui pelo breu nocturno, escarrapachado no lombo do macho, entre as sacas pejadas de café. Contornei Alfaiates, e o mesmo fiz em Aldeia Velha e Aldeia do Bispo, para evitar o ladrar dos cães, que podiam levantar suspeitas. Não é que tivesse receio dos guardas fiscais, que na altura fechavam os olhos ao tráfico de café, mas a verdade é que preferia que não me aparecessem ao caminho, porque só o luzir dos botões daquelas fardas de cotim, me deixava desacorsuado.
Quando atravessei a raia redobrei os cuidados, ali já não poderia contar com a tolerância das autoridades. Acrescia que os carabineiros não tinham a mansidão dos nossos fuscos. Aquilo era gente desalmada, sem coração nem fígado, sempre prontos a aliviar o negociante do seu carrego e a chapear fogo, se para isso houvesse ocasião. Para mais, naquela altura, os guardilhas espanhóis andavam preados para apanharem à mão tente um português, de modo a vingarem as bofetadas que o Manuel da Cruz, de Aldeia da Ponte, aí no atrás, espetara a um deles que o queria aprisionar.
A ida correu-me de feição e entreguei a mercadoria na aldeia espanhola, substituída pelos fardos de fazenda. Carreguei a montada e decidi retornar de imediato, sem sequer dar descanso ao animal.
– Tiene atencion, que los carabineros son en la frontera – avisou-me o espanhol com quem fiz o trato – fue un gran riesco venires con el mulo, que la mayoría de los contrabandistas portugueses antes llevan la mercancía a la espalda.
– Gracias, Alonso, também eu costumo andar a penates, mas o macho dá-me melhores garantias de safar a carga em caso de mau encontro.
O espanhol encolheu os ombros, e eu, que não estava para delongas, fiz-me ao caminho. No trajecto, ainda em Espanha, meti a corta-mato, sempre com o macho de rédea, tomando uma vereda que seguia por entre giestas e pinheiros.
O céu encoberto impedia a lua de alumiar o caminho. Isso parecia dar-me segurança, mas, a dado passo, num local aberto, onde menos o previa, saíram-me ao caminho dois carabineiros:
– Detiene-te, cretino!
Palavras não era ditas e já um apelazava o macho pelo cabresto e o outro me tentava lançar os gadanhos. Consegui saltar para o lado, livrando-me de ser filado à primeira. Ainda mal refeito da surpresa e beneficiando do breu nocturno, ergui a vara e mandei uma tremenda arrochada no traseiro do animal, que deu dois pulos e se pôs ao fresco, de nada valendo o esforço do carabineiro para o manter dominado. O macho arrancou para um lado e eu mandei-me para o outro, correndo a toda a brida para me escapulir. Os guardas ainda empunharam os fuzis e foguearam em minha direcção, mas a noite fechada não os ajudou na pontaria. Saindo ileso da compita retomei o caminho da raia.
Já recuperado da surpresa, vieram-me á cachimónia as palavras do Alonso que se admirava de eu contrabandear com recurso ao macho. O animal fora afinal a minha salvaguarda. Ele sabia, como eu, os caminhos que conduziam a casa, assim salvando a mercancia das garras de rapinantes que se queriam apoderar do que não era seu.
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«Aventuras de um velho contrabandista», por Paulo Leitão Batista
Estas aventuras de um velho contrabandista são muito interessantes. São reais ou é o escritor a pôr no papel a sua imagem criadora? E porque não fazer um livro com as várias crónicas publicadas que tenho acompanhado com bastante atenção? Ou já está publicado?
José R. Pires Manso