Embora a ciência médica tenha evoluído muito nas últimas décadas, a verdade que regrediu em igual proporção a responsabilidade da prática da medicina, o que é perfeitamente visível na simples forma como são emitidas as prescrições terapêuticas.
Há dias fui a uma consulta médica no Centro de Saúde da minha área de residência. O facultativo que me observou e sobretudo ouviu os meus queixumes, entendeu passar-me receita com alguns medicamentos.
Já na farmácia, a diligente funcionária que me atendeu tentou compreender os rabiscos da prescrição, mas teve de recorrer a uma colega, que também nada decifrou. Quando me apercebi, já todos os funcionários da farmácia estavam de roda do papel, dando palpites acerca dos gatafunhos da receita, mas sem que chegassem ao necessário consenso. Uma tentativa de contacto com o Centro de Saúde também foi em vão, pelo que, educadamente, me solicitaram que lá retornasse e solicitasse uma nova receita, por aquela ser absolutamente ilegível.
Voltei ao Centro de Saúde, mas o médico saíra e só voltaria a dar consultas daí a dois dias. A minha sugestão de alguém falar com outro médico não pegou e, face à postura irredutível dos funcionários, tive de ali voltar ao fim de dois dias para o médico, a contragosto, e vociferando contra os funcionários da farmácia, emitir novo receituário, com arabescos algo melhor desenhados do que aqueles que o papel anterior continha.
Esta irresponsabilidade do médico não poderia passar-se nos tempos antigos, quando a lucidez boiava à tona da água e todos cumpriam as regras estipuladas. Durante muitos anos vigorou o decreto-lei n.º 32.171, de 29 de Julho de 1942, cujo artigo 11.º estipulava: «As receitas serão redigidas em língua portuguesa, usando-se sempre que as circunstâncias o permitam folhas apropriadas em que se contenham impressos o nome e morada do médico que as firme, sem emprego de abreviatura, com as doses expressas por extenso e de harmonia com o sistema decimal, datadas, e devendo o seu teor ser escrito a tinta e com letra bem legível, de forma a serem facilmente entendidas pelos farmacêuticos. Quando se prescreva dose menos usual deve esta assinalar-se, quer sublinhando as palavras que a indicarem, quer escrevendo-as não só por extenso, mas também por algarismos.»
E lá vinha a disposição sancionatória, para que a norma tivesse eficácia: «A infracção ao disposto é punida com multa de 100 a 500 escudos.»
No Sabugal recordo dois grandes clínicos, que ali tinham consultório, os doutores Francisco Maria Manso e Raul Baptista Monteiro, cuja letra aposta nas prescrições era cuidadosamente desenhada, tal qual o professor Frederico, de Vila Boa, a ensinara nos bancos da escola, para que todos a compreendessem.
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«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
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