Quando os grandes espíritos se encontram é um verdadeiro acontecimento. Mas quando os grandes espíritos se encontram à volta de uma boa mesa, onde o Bucho Raiano é senhor e rei, então é uma autêntica festa. Por natureza, o bucho é todo vaidoso. Vai da sua fisionomia. Aproveita a barriga para se ufanar e se mostrar todo pimpão.
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– À mesa não há melhor do que eu! – , pretende ele dizer.
– Cala-te, diria o anfitrião. Não fales muito depressa porque ainda vamos ver. Tens de convencer os convivas e, sobretudo, as senhoras e as crianças, porque, isto já não é como dantes. A variedade é tanta que já não estamos condenados a comer-te por tradição. Tens de te impor pelo sabor e pelo bom gosto para superares a tradição, porque, se assim fosse, então ficarias reduzido ao teu interior beirão raiano e só os que lá iam, no Inverno, é que teriam a coragem de te comer.
O Senhor Bucho compreendeu a observação e ficou calado, até porque à mesa do anfitrião se encontravam personalidades que não se compadeceriam do seu carácter anarquista e impulsivo, às vezes quase sem educação. Se tudo aquilo é porco, o que é que se poderá esperar?
Pois é, mas ele é também muito inteligente. No centro da mesa, a sensibilidade intuitiva permite-lhe usar da sua argúcia para observar cada um dos convivas à sua volta. É o único que percebe quem gosta ou quem não gosta.
Já agora, Senhor Chanceler, permita-me que introduza algumas inovações na confecção do Senhor Bucho, pois temos de acompanhar a evolução dos tempos, à luz de novos conhecimentos científicos. Para evitar que se martirize durante três ou quatro horas a cozer dentro do molho inicial, o anfitrião decidiu espetar numerosos palitos à volta da barriga. Deste modo, o Bucho não corre o risco de rebentar e todo o molho gordurento sai pelos orifícios dos palitos. Evita-se aquela antiga receita de o envolver numa meia ou num saco de plástico. Que horror! O Prof. Carvalho Rodrigues, com o seu olho científico-clínico, e que se encontrava ao meu lado, confirmou que se tratava de um verdadeiro método para tirar as gorduras ao bucho.
Ficamos com vontade de saber se haveria alguma relação entre o Bucho e as invasões francesas. Teríamos de investigar se os franceses ou os ingleses teriam saboreado esta iguaria nas nossas terras raianas. E o editor Joaquim Pinto da Silva achava que poderia ser matéria para um próximo livro. O Tenente-Coronel Lopes da Silva, que já escreveu sobre a cavalaria no tempo das invasões francesas, prometeu-nos a sua preciosa ajuda.
E o Bucho continuava atento, a ouvir histórias de Casal de Cinza, do austero e míope Cónego Messias Coelho (não se podia dizer tudo por respeito pela sobrinha ali presente, e que bela coincidência!), grande teólogo da Guarda, venerador de cães por serem mais inteligentes que os homens e sobretudo as mulheres que considerava desprezíveis se não tivessem um mínimo de argúcia.
Já íamos fazer a reconstituição da Batalha do Sabugal, mas o General Artur Pina Monteiro achou por bem reservá-la para o próximo dia 31 de Maio, na Livraria Orfeu, onde ele próprio se propõe apresentar o livro «O Sabugal e as Invasões Francesas». Mas que honra! Talvez por culpa do Bucho, divagou-se até à Flandres, para evocar a comemoração da batalha de La Lys, onde quase todos os presentes tinham acompanhado o General Pina Monteiro que ali representou, com a maior dignidade, as Forças Armadas Portuguesas. Recuámos até à guerra da restauração da independência de Portugal, às constantes escaramuças, ainda por escrever, (os historiadores estão muito preguiçosos, dizia o Prof. Carvalho Rodrigues!) entre os espanhóis e os portugueses da raia beirã.
O Bucho já mal ouvia, tinha quase desaparecido no interior de cada um de nós. Perante as qualidades inigualáveis do seu sabor, já todos pretendiam ter origens nas terras do Bucho, nem que fosse por um cabelo. Claro que quanto ao General Pina Monteiro e ao cientista Prof. Carvalho Rodrigues não restavam dúvidas. O Bucho reconheceu-os logo. Também não se fez rogado em reconhecer o historiador militar que já tinha percorrido em pensamento, em estudo e na realidade as nossas boas terras beirãs, e igualmente o editor que, por portas e travessas, recebe, na sua mansão da Foz, as cristalinas águas do Côa, indispensáveis na confecção do famoso Bucho Raiano.
Não admira, pois, que um jantar de Bucho Raiano, tão longe das nossas terras, possa torná-las tão presentes como se estivéssemos ali ao pé.
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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Por isso é que aqui tem faltado bucho aqui à gente… leva-o todo o Tenreira! Consta que até tem agentes que percorrem as feiras da Raia a “mercar o dito cujo”…