Dando continuidade à publicação da eloquente Lição de Sapiência pronunciada no Sabugal no dia 5 de Março de 2011, na cerimónia do II Capítulo da Confraria do Bucho Raiano, pelo confrade João Luís da Inês Vaz, aqui deixamos a segunda parte do texto. (Parte 2 de 3.)
(Continuação. Parte 2 de 3.)
Morto e estendido numa grade, daquelas de «agradiar» a terra, como se dizia, chamuscava-se com palha (que isso dos maçaricos é coisa recente…), lavava-se bem lavado dos dois lados, «fazia-se-lhe o cú», apesar de na véspera o porco já não ter comido, operação importante porque ia evitar que quando o matador começasse a abri-lo não se despejassem as fezes, levava-se para a loja, punha-se no chambaril e dependurava-se.
Aberto o porco, «quem vê um corpo, vê o seu corpo» com o matador a dar golpes cirúrgicos bem certeiros para não «arrebentar» com as tripas e retirar de imediato o «seventre», deitavam-se as entranhas ainda fumegantes para um tabuleiro onde as mulheres irão começar o trabalho de separar as tripas grossas das finas, as tripas do véu.
Entretanto, o matador continua a abrir o porco deitando para o lado as banhas que irão ficar a secar até ao dia seguinte, retira a ferssura e o fígado que, separado do fel com todo o cuidado, é imediatamente preparado para ser comido logo ao almoço e, depois dos comentários habituais dos homens e mulheres que assistiram à tarefa («é gordo», «olha que carne tão linda», «tem muita febra», «tem poucas banhas», «é mesmo c’m’a gente tirando a alma»…), os homens são chamados para a mesa onde vão comprazer-se num repasto de matança, bem melhorado, porque matar porco é sinal de abundância, nesse dia e nos meses que se seguem e há que tratar bem o matador e os convidados/ajudantes.
A mesa é algo de mágico e religioso, colectivo e individual. À mesa invocam-se os deuses, à mesa fizeram-se pequenas libações em honra dos deuses e dos santos, à mesa instituiu Cristo a Eucaristia que ainda hoje é celebrada numa mesa, o altar, que termina com o rito da comunhão do pão e do vinho, os alimentos principais da antiguidade, mas a carne também está presente pois se recorda o sacrifício do corpo de Cristo, «tomai e comei todos, isto é o meu corpo, isto é o meu sangue» se diz na missa. Não começam as refeições ainda hoje muitas vezes por uma oração de agradecimento a Deus pela comida que está ali mesmo à frente?
Se não podemos dizer que a mesa como um momento mágico/religioso é tão antiga como o próprio homem, podemos pelo menos remontá-la à antiguidade grega e romana e aos povos que precederam os Romanos na nossa região. À refeição queimavam-se óleos ou gorduras em honra das divindades e por exemplo, no castro da Senhora da Guia em Baiões, no concelho de São Pedro do Sul, foi encontrado um carrinho votivo que estaria em cima da mesa onde se fazia a refeição e que teria exactamente uma função ritual.
Desde que a civilização começou na Mesopotâmia, o banquete à mesa serviu para selar alianças políticas, alianças matrimoniais ou acordos entre particulares.
No Egipto das pirâmides, o porco era uma das principais fontes de proteínas dos seus habitantes e estava presente na mesa do faraó ou do camponês. Só os sacerdotes o consideravam um animal impuro e por isso não o comiam, pois seriam essencialmente vegetarianos. Utilizava-se a sua gordura e comia-se a carne assada.
Mas, na antiguidade, o porco também foi amaldiçoado e na Bíblia aparece a proibição de o comer porque era um animal impuro, apesar de ter unha fendida, mas não rumina e como não rumina não pode ser comido. É interessante esta questão porque há quem considere que Moisés sabia que a carne de porco mal cozinhada podia transmitir a traquinose, doença muscular e por isso proibiu o seu consumo.
No entanto, deverá tratar-se apenas de uma questão cultural pois não é crível que Moisés tivesse conhecimento dessa doença. Talvez seja uma forma de distinção entre o Egipto donde fugiam e entre a terra para onde se encaminhavam, onde o leite e o mel corriam como rios… Distinguiam-se assim do povo que os tinha escravizado e do país de onde agora fugiam.
Podemos, pois, dizer que agora o porco passa a ser um animal arreligioso, pois nem os homens o comem nem pode ser oferecido a Iavé.
Entre os Gregos, o banquete à mesa atinge o apogeu, pois sentar-se à mesa com outros é o maior dos prazeres, significa a comunhão com eles, estar à mesa é ser aceite entre os membros de um grupo, familiar, de amigos, de uma sociedade ou instituição. O banquete entre os Gregos distinguia os homens civilizados dos não civilizados, o humano do animal, é a distinção suprema entre civilização e barbárie.
Por essa mesma época, séculos V-IV a.C., na nossa zona o porco era sacrificado em honra das divindades locais como Trebaruna, Laepus, Reva e outras. No Cabeço das Fráguas, divisória dos concelhos da Guarda e Sabugal, uma grande cerimónia dos povos circunvizinhos sacrificou a várias divindades uma ovelha, um touro e um porco de cobrição, imagine-se. É que não era um porco qualquer, era um porco de cobrição, o porco mais importante de uma comunidade, certamente. E é exactamente esse porco que vai ser sacrificado à divindade. Não sabemos o porquê de tal acontecer, mas facto importante se deve ter dado para serrem sacrificados exemplares dos principais animais que o homem lusitano criava e que oferece às suas divindades…
A importância do porco era de tal ordem que em todas as inscrições ditas em língua lusitana, língua que os povos pré-romanos aqui estabelecidos falavam, aparece mencionado como um animal sacrificado às divindades indígenas, seja no Cabeço das Fráguas já citado, em Lamas de Moledo, no concelho de Castro Daire.
São bem conhecidos, até dos filmes que de vez em quando passam nos cinemas ou na televisão, os prazeres romanos da mesa. Plutarco, autor grego mas que vive já sob domínio romano, diz que «não nos sentamos à mesa para comer mas sim para comer juntos». É o convivium romano que os Romanos tanto prezavam e onde gastavam tanto do seu tempo e de tal forma era o prazer de comer e de comer acompanhado que, romano que se prezasse, tinha sempre convidados à sua mesa ou era convidado para outras mesas. Mesmo comendo sozinho o romano comportava-se como se tivesse convidados e por isso se dizia que Lucius cenat in domo Lucii ou seja Lúcio janta em casa de Lúcio…
O porco era rei à mesa romana pois, como diz Cícero na sua obra De Natura Deorum, o porco foi dado aos homens pelos deuses para ser comido enquanto os ovinos e caprinos dão o leite e a lã e o boi é companheiro de trabalho do homem e por isso só serão mortos quando já não forem necessários ou não puderem cumprir a sua missão. Apesar de existir para servir de alimento ao homem, o porco deve ser sempre abatido segundo um rito sacrificial.
Do porco aproveitava-se tudo e comia-se tudo, no entanto algumas partes eram mais apreciadas que outras e por isso reservados para o proprietário ou para distinguir alguém especial. O focinho, a vulva da porca ou os testículos do porco eram considerados uma verdadeira delícia gastronómica, um verdadeiro pitéu.
No período que se segue aos Romanos, o consumo de carne de porco vai-se impor definitivamente graças a dois factores fundamentais. Por um lado, a civilização de influências célticas e germânicas dos povos ditos «Bárbaros» que puseram fim ao Império romano que vão provocar alterações na dieta mediterrânica do Sul e, por outro lado, a nova religião que entretanto surge, o Cristianismo nascido no Próximo Oriente. Esta religião bebeu influências hebraicas, mas vai beber também nos rituais romanos e por isso vai permitir o consumo de porco em certos dias do ano, os chamados «dias gordos», o que faz com que o porco se imponha definitivamente como a principal fonte de proteínas dos europeus.
(Continua.)
João Luís da Inês Vaz
Não querendo ser traquina 🙂 mas outro erro no 8º parágrafo “traquinose” o termo correcto será “triquinose”. Abraço
alerto para um erro/gralha/lapso neste adágio descrito no segundo parágrafo “quem vê um corpo, vê o seu corpo” o correcto será “quem vê um porco, vê o seu corpo». Até porque sempre ouvi os antigos dizerem ” Se queres ver o teu corpo, mata um porco”. Abraço