Durante muito tempo, demasiado tempo, esteve-se de acordo que as artes culinárias não tinham importância em termos de património entendido na acepção da palavra.
O acto de comer (era) é entendido como coisa natural, ao modo do acto de respirar. Especialistas de todos os matizes tentaram contrariar tal asserção, fazendo notar o facto de a alimentação estar associada a múltiplos factores: identitários, sociais, religiosos, económicos, simbólicos, e de comunicação, variando de grupo para grupo conforme os valores culturais que criaram e defendem.
Nem depois dos formidáveis trabalhos de Levi-Strauss, as incisivas investigações de Goody, e os pertinentes estudos de Marvin Harris – o homem come de tudo, mas não come tudo – por cá a situação só se alterou um pouco a partir dos anos noventa do século passado.
Muito antes o historiador Oliveira Marques teve o mérito de salientar a importância da história da alimentação em Portugal, os leitores de Fernand Braudel concediam razão ao autor da Sociedade Medieval Portuguesa, ams no essencial, para muitos o termo – artes culinárias – ressumava a pedanteria.
Os serôdios e misantropos dizem que comer não passa da satisfação de uma necessidade fisiológica, e confeccioná-la está adstrita ao desempenho habilidoso das mulheres, e ao engenho dos chefes de afamados restaurantes e hotéis de luxo. Ainda agora vemos, ouvimos e lemos manifestações depreciativas do fenómeno alimentar esquecendo ou fingindo-se esquecer a importância das cozinhas – oral, escrita-histórica-cultural, local, regional, nacional, global – nas sociedades.
No ano 2000, a nona arte – a gastronomia portuguesa – foi declarada património cultural. E desse acto o que resultou? Deixo a interrogação. No entanto, atrevo-me a referir a clamorosa ausência de cartas gastronómicas a nível regional, a falta de publicação dos variados léxicos culinários existentes, e dos modelos alimentares dos camponeses e operários. Os trabalhos publicados ultimamente são de natureza parcelar e nós precisamos de uma História da Alimentação de conjunto, como de pão para a boca. No mais, o que conhecemos está muito restringido aos conventos, mosteiros, casas nobres e um ou outro naviol, o que é pouco.
Por último, atrevo-me também, a avivar os méritos das Confrarias Gastronómicas na defesa do património que lhes confere a matricialidade, não é um puxar da brasa à nossa sardinha, é antes realçar o seu papel, mesmo que muitas vezes apenas de representação, no alertar os poderes, todos os poderes de variados matizes, para a urgente necessidade de a todo o tempo e todo transe protegermos este preciso bem cultural, o qual está sujeito a inúmeros ataques a principiar pela cozinha oral.
Armando Fernandes
Vice-Presidente da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas
Armando Fernandes é indiscutivelmente o português mais ilustrado em história da Gastronomia.
Efectivamente domina todos os grandes periodos, discorrendo com a mesma erudição e o mesmo sentido prático sobre as receitas do DEIPNOSOPHISTARUM
ou da revolução provocada pela introdução do tomate na culinaria europeia.
Alíás a sua biblioteca da especialidade conta com muitas centenas de titulos.
A sua vinda ao nosso blogue honra-nos, assim, sobremaneira.