A «política de terra queimada» posta em prática por Wellington, transformando Portugal num deserto, para que as tropas invasoras não encontrassem meios de subsistência, tornaram os esfomeados soldados franceses em verdadeiros animais ferozes, sofrendo as populações os consequentes actos de barbárie.
À medida que o exército de Massena avançava os franceses davam-se conta de que em Portugal apenas encontrariam fome e miséria. O povo abandonara as aldeias, vilas e cidades, escondera os meios de subsistência que não pudera transportar, queimara as searas, destruíra fornos e moinhos, envenenara fontes e poços. Esta bem sucedida táctica, onde os portugueses de tudo se desprenderam por manifesto patriotismo, foi dois anos depois seguida na Rússia, onde as tropas de Napoleão Bonaparte voltaram a sentir os efeitos da fome, a que se juntaram os do frio extremo.
Nos dias de marcha o soldado comia a parca ração de biscoito que lhe era distribuída, mas quando a coluna parava e acampava, eram de imediato organizadas batidas, ou acções de saqueamento, procurando-se víveres pelos aglomerados populacionais em redor. Como não encontravam vivalma nem meios alimentícios à mão, procuravam adivinhar onde estavam escondidos. Cavavam onde houvesse terra remexida de fresco e, por vezes, eram premiados com a descoberta de uma arca cheia de cereal. Esbarrondavam as frágeis paredes das casas e encontravam nos vãos falsos arcas salgadeiras cheias de carne de porco. Entravam nas lojas e por vezes ficavam deslumbrados com pipas cheias de vinho que os seus proprietários, na pressa da fuga, não tiveram tempo de entornar. Atentos aos sons do campo detectavam o balir, o mugir e o grunhir dos animais domésticos que ficaram para trás ou que tresmalharam, apressando-se a conduzi-los ao acampamento, onde eram abatidos à medida das necessidades.
Na falta de outro alimento a soldadesca sacrificava os burros de carga que acompanhavam o exército. Nunca tanto asno foi comido nas terras portuguesas como nos dias da terceira invasão francesa. Das largas centenas de burros que as hostes napoleónicas trouxeram para transporte de carga e de feridos em combate, apenas parcas dezenas regressaram a Espanha no final.
Cada regimento organizava as suas pilhagens para buscar sustento. Chefiadas por sargentos, as colunas de saqueadores, que os generais designavam de «forrageadores», iam pelo campo seguindo direcções diferentes. Por vezes estas sortidas demoravam dias, só regressando quando tivessem deitado mão a algo capaz de matar a fome aos camaradas. As aldeias estavam desertas, e ai do desventurado que estes soldados encontrassem. Vinham-lhe ao de cima instintos de ferocidade e eram capazes de o torturarem até à morte para obterem a revelação de onde havia algo para pilhar.
O capitão Jean-Baptiste Delafosse, que esteve integrado no corpo de Reynier, publicou as suas memórias sobre a campanha de Portugal, onde descreveu, com manifesta emoção, o que a tropa gaulesa passou, justificando assim os actos de barbárie praticados sobre a população portuguesa:
«Desgraçado do camponês que o destino fazia encontra-se com saqueadores! O pobre infeliz via-se, em primeiro lugar, despojado e, muitas vezes, cúmulo do horror, era morto… por homens a quem a fome, essa dura necessidade, tinha tornado cruéis e semelhantes a selvagens (…). Necessitavam de guias em localidades desconhecidas; apanhavam um, ordenavam-lhe que os conduzisse a uma aldeia, não era a sua, bem entendido, onde ele os levava; chegados lá, forçavam-no a indicar os esconderijos, mas, como fazer? O pobre diabo não os conhecia (…). Passavam-lhe uma corda pelo pescoço e o infeliz ouvia estas palavras: “Enforcado até que nos digas onde está o grão!”… Como não o sabia indicar, suspendiam-no até começar a ficar azulado; então punham-no em terra para que falasse! Infeliz! (…) O soldado, na sua ferocidade, dizia-lhe: “Ah, tu não queres dizer onde fica o grão? És um bandido, à forca!” E enforcado ficava.»
Mas vingança gera vingança e o mesmo capitão francês descreve um episódio atroz a que assistiu:
«Em frente de uma casa isolada encontrámos, na nossa marcha de retirada, quatro corpos enforcados numa árvore!… Entrando no rés-do-chão, um espectáculo medonho ofereceu-se aos nossos olhos: sobre a parede estava pregada a pele de um homem esfolado há pouco tempo e por baixo estava escrito em português: “Dragão francês, esfolado vivo, por ter enforcado os nossos homens!…”»
Era esta a resposta do povo português face ao saque, às sevícias, à morte por divertimento e ao abuso das mulheres constantemente praticados pelos soldados franceses.
A prática selvagem de esfolar franceses começou logo em Riba-Côa, nos primeiros dias desta infernal terceira invasão, quando em Nave de Haver foram detidos por populares dois oficiais franceses (um coronel e um tenente) e dois soldados que se haviam perdido da escuridão e ali tinham ido parar. O tenente d’Oraison, atingido com um tiro, foi de seguida esfolado pelas mulheres da aldeia, que assim exprimiram o ódio aos franceses que as violavam e lhe matavam os maridos e os filhos. O coronel Pavetti e os dois soldados foram violentamente torturados e enviados à tropa regular anglo-portuguesa, que estava do outro lado do Côa. Ao ter conhecimento do sucedido, Massena mandou cercar a aldeia e fuzilar os culpados, sendo conduzidos ao quartel francês um conjunto de camponeses, que pagariam com a vida a ousadia e a barbárie popular. Wellington, ao saber do caso, escreveu a Massena, intercedendo pelos infelizes, que eram, assegurava-o, homens da Ordenança portuguesa. Deveriam por isso ser tratados como prisioneiros, da mesma forma que ele tratava os soldados franceses capturados. Massena, agastado com a argumentação de Wellington, que na sua perspectiva apenas defendia assassinos, respondeu-lhe com azedume: «Não lhe fica nada bem falar da sua lealdade nos actos de guerra e no seu respeito pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas. Pois não é o senhor que obriga os portugueses, dos quais, no entanto se diz protector, a devastar as suas propriedades e a fugir quando chegam os franceses?». E os pobres camponeses de Nave de Haver foram de facto executados.
Foram tempos tenebrosos, onde a ira e a sede de vingança tomaram conta de tudo. Tempos que importa evocar na perspectiva de se tomar consciência da desumanidade que sempre acompanha os conflitos armados entre as nações e do sofrimento atroz que por essa via é imposto às populações atingidas.
Paulo leitão Batista