A casa tipicamente beiroa, envolvida pelo curral, com o famoso balcão ou patim e de vistosa escadaria ligando o piso térreo ao superior, toda em pedra, melhor ou pior aparelhada, é dos principais vestígios do nosso passado colectivo, que merece preservação.
Para o homem antigo, a casa tinha sobretudo uma preocupação prática. O povo queria um local de abrigo onde a funcionalidade superasse a comodidade. Vale a pena citar Mestre Aquilino Ribeiro: «A aldeia, mal o sol pula detrás dos montes, esvazia-se para os campos. É lá que estão os tesouros. A casa pouco mais representa do que ponto de passagem, abrigo para a noite, compasso de espera para a cova.»
Esse aspecto prático impôs construções exíguas e singelas como aquelas que caracterizavam a aldeia beirã, hoje muito desvirtuada com o proliferar de edifícios modernos . Via de regra a construção antiga é em pedra, variando o tipo com a composição morfológica do solo onde a casa está implantada. Raro perduram habitações de madeira, material apenas usado para simples cabanas de recolha de gado ou de alfaias agrícolas. A casa do lavrador era norma ter defronte um logradouro murado, que em certos lugares se chama quintã, mas que usualmente dá pelo nome de curral ou pátio. Aqui existia o alpendre ou coberto, onde se formava a moreia da lenha, se instalava o poleiro das pitas e se quedava o carro das vacas.
Por bitola, a casa tinha dois pisos, sendo o superior para instalação das pessoas e o térreo para recolha dos animais. Não era em vão que existia esta disposição na casa beirã. Os invernos eram rigorosos e o facto dos animais dormirem por baixo contribuía para aquecer os aposentos superiores, pois a separar os pisos havia apenas uma placa de solho.
Para acesso à casa havia uma escaleira exterior, não muito alta, encimada por um balcão ou patim, geralmente protegido por guardas de granito. Em muitos casos havia um poleiro por baixo do balcão, onde as pitas entravam por um buraco existente na parede, que era tapado com tropeço de pau traçado à medida.
Quando ao interior da casa era comum entrar-se directamente na saleta, onde se dispunha uma mesa e arcas da roupa e de cereais. Na cozinha havia a lareira, encostada à parede, tendo por base uma laje de granito. Ao fundo da lareira surgia uma pequena divisória em pedra, a que se chamava pilheira, que servia para depositar a cinza. Em toda a cozinha havia bancos pequenos e geralmente um escano, que era um banco corrido, com encosto, instalado junto da lareira e que por baixo tinha armários onde se guardavam louças. A um canto aparecia a cantareira ou vasal, que era uma espécie de estante onde se colocava a loiça e os cântaros da água. Muitas casas eram de telha vã e não tinham chaminé, saindo o fumo pelas frestas das telhas.
Os quartos, ou alcovas, eram de muita exiguidade, onde cabia apenas uma cama. Esse facto demonstra bem que a habitação era apenas lugar de passagem, refúgio para a noite, porque o mais da vida estava nos campos, no trato dos agros.
Ante a urgência construtiva e a negligência da fiscalização, destruiu-se irremediavelmente a harmonia urbanística. Em poucas décadas de construção moderna na aldeia, seguindo novos gostos e elaborados estilos, ganhou-se muito na comodidade interior, mas perdeu-se no aspecto exterior da habitação aldeã.
Paulo Leitão Batista
É curioso que a casa tradicional das Beiras seja de origem galega, uma vez que a casa minhota é bem diferente da casa das Beiras. E até pela proximidade geográfica era natural que a casa do Minho fosse então igual (ou parecida) com a casa tradicional da Galiza.
Entretanto, segundo informações que recolhi (não digo que totalmente fidedignas) as casas tradicionais galegas têm uma varanda e algumas têm uma espécie de “marquise” , coisa totalmente fora do contexto da casa tradicional das Beiras. Também há referências a que na Galiza aparecem “espigueiros” , tradicionais no Minho, mas não na Beira Alta ou Baixa.
Gostaria que alguém desenvolvesse este tema da casa galega semelhante à das Beiras.
A casa típica é de origem galega de facto. Talvez isso explique a diferença com o outro lado da raia… Medelim, embora parecido (casa de 1.ºandar com balcão) , tem outras especificidades, nomeadamente a arquitectura judaica e o piso térreo ser para oficina ou comércio.
Fico , então, à espera da colaboração do sr. Paulo Presas relacionada com as casa da Beira e da vizinha Espanha, porque este tema interessa-me, na medida em que não encontro semelhanças entre umas e outras , apesar de ser moda referir a grande ligação entre as culturas portuguesa ( da raia sabugalense) e a espanhola (também da raia).
Não sei quem “endeusou” a casa tradicional da Beira Alta, nestes comentários. São, realmente verdades “La Palissianas” aquelas de as casas não terem condições, mas o que o Leitão Baptista refere no seu comentário sobre o porquê de os emigrantes quererem construir as casas desenquadradas de tudo, é a pura realidade. Quem viveu naquelas condições não o poderia voltar a fazer. Só é pena que muitos se esqueçam daquilo que passaram e tenham , até, o descaramento de referirem que nunca viveram mal. Não sei porque o fazem, mas há muitos que referem que nunca viveram nessas condições, quando toda a gente sabe que sim.
Essas casas com balcão também as há na Beira Baixa (Medelim, Proença a Velha, etc…)
A casa típica da Beira (seja ela Alta ou Baixa) é muito semelhante à galega, ou não fossem os Beirões descendentes de colonos galegos, após a Reconquista.
Desde já peço desculpa pela repetição da descrição da casa Beirã, pois por lapso meu, dadas as largas horas de leitura cibernauta, que hoje já me afectam, fiz este comentário, sem ler a crónica em questao e tomando o primeiro comentário, como a dita crónica… o que me levou a elaborar esta descrição, que em nada engrandesse a já efectuada pelo sr. leitão batista….
mais uma vez as minhas desculpas….
obrigado
paulo presas
Ora, boa noite aos ilustres intervenientes,
como de esperar, este é um assunto que me cativa.
Posto isso, passo a fazer uma breve descrição da Casa Tipica da Beira Alta:
A casa típica da Beira Alta é quadrangular, ocupa pouco espaço e é geralmente constituída por dois andares, o rés-do-chão e o primeiro andar.
O primeiro andar, ao qual se tem acesso por uma escada exterior de pedra, onde se encontram os quartos e a cozinha. As divisões são pequenas, tudo dividido em madeira. A cozinha é o único lugar da casa que tem pedra no chão para acender o lume. Na cozinha, era também vulgar encontrar-se uma salgadeira onde geralmente as pessoas guardavam a carne que iam utilizando na sua dieta alimentar durante o ano. Muito rudimentar, utilizava a tripeça e as panelas de ferro. Na parte de cima da pilheira era onde se secavam figos, castanhas e presuntos.
No rés-do-chão, existiam lojas para animais, a adega, o celeiro, e os produtos que as pessoas obtinham através do cultivo das suas terras. A loja é um terreno com uma manjedoura e um curral para os porcos.É na loja que se arrumava a palha e o milho, e a adega.Normalmente também tinha tarimbas para armazenamento dos géneros alimentícios.
Ao lado da casa, por baixo do alpendre, havia ainda lugar para as galinhas.
Os materiais utilizados na construção das casas, são sobretudo os que estão nas regiões próximas, pois no nosso país as vias de comunicação eram ainda muito insuficientes e a maior parte da nossa população vivia na pobreza. O granito é o material preferido, dado a sua facilidade de trabalho e a resistência ao esforço e a alterações.O granito de Grão grosseiro e de duas micas, que predomina no norte de Portugal, não se presta à feitura de ornamentos delicados, mas harmoniza-se com as formas singelas de estilo românico.
Este estilo de construção proliferou devido as nossas povoações serem de configuração muito concentrada e pouco ordenada, e o emparcelamento ser uma constante, ao passo que na nossa vizinha Espanha as propriedades eram de maior dimensão, pois desde cedo, o governo espanhol implementou restrições no emparcelamento das terras, facto (não único) que contribuia para que as edificações podessem alargar-se no terreno, permitindo construir os estabulos paralelamente na horizontal, á edificação principal (para habitação), tal facto só acontecia na nossa ”zona” em familias abastadas, proprietárias de grandes areas de terreno e em zonas não urbanas…
Para não me alargar muito neste ”comentário”, prometo, em breve enviar um texto com vários motivos que justificam a diferente configuração da construção dos nosso hermanos relativamente á nossa.
Cumprimentos a todos,
Paulo Presas
Paulo Leitão
Antes de mais, e para que não haja dúvidas, deixo claro o meu apoio ao teor da tua crónica, a qual me levanta, no entanto, algumas questões que não quero deixar de partilhar.
1. A casa em granito tal como tu muito bem descreves e que eu bem conheci quer por ter vivido muitos anos na “Vila”, quer pelas minhas ligações familiares a Vale de Espinho, era também o símbolo de uma qualidade de vida muito baixa de uma grande parte dos nossos conterrâneos.
Muitas delas, quando não todas, não tinham água canalizada, nem electricidade; o frio no Inverno suportava-se com a lareira, pois muitas destas casas nem forro tinham, ficando as telhas à vista; a presença dos animais no piso térreo eram uma fonte de maus cheiros, de moscas e de outros insectos; e, sobretudo, nelas viviam muitos dos que tiveram que partir para as Franças para melhorarem as suas condições de vida.
2. Estes emigrantes quando decidiram construir a sua casa na aldeia, quase sempre o fizeram copiando (e infelizmente não houve quem fizesse perceber que havia outras soluções), soluções que viam em França. sobretudo procurando novas e melhores condições de habitabilidade.
3. Esta opção, mais que qualquer outra, provocou a descaracterização das nossas aldeias, a que se associou naturalmente o desejo dos que cá ficaram em terem uma habitação mais condigna e de melhor qualidade de vida, muitas vezes optando pela construção da moradia mais ou menos isolada, ou pela demolição da casa anterior.
4. A percepção de que tal não era a melhor solução tem contribuído para que, pouco a pouco, se volte à casa em granito, dando-lhe naturalmente outras condições de habitabilidade, pois ninguém hoje quereria viver nas condições que os nossos avós e pais ali viveram.
5. Não se pode é endeusar a casa de granito (e sei que tu não o fazes), nem considerar que nas nossas terras só aquele tipo de casa é que é bom e, muito menos, mascarar a triste realidade que era a vida nas mesmas há cinquenta anos.
6. Restaurar o que pode ser restaurado, manter a identidade dos núcleos centrais mais antigos das nossas aldeias, vila e cidade é o rumo que penso deve ser seguido. Mas paralelamente, há todo um espaço menos antigo que pode, perfeitamente ser ocupado com outro tipo de construção, desde que com qualidade arquitectónica.
Ramiro Matos
Ramiro,
Eu de facto não «endeuso» a casa de granito, julgo sim que algumas delas, devem ser preservadas no seu aspecto exterior, embora melhoradas em termos de interior, para que tenham condições de habitabilidade de acordo com os novos tempos. No resto a aldeia faz-se da diversidade de estilos, cada um próprio da sua época histórica.
A casa do emigrante, de grande amplidão, com telhados de várias águas, grandes varandas e escadarias, marcou uma época e um dia será vista com curiosidade como a «casa do emigrante de França», à semelhança do que acontece no Minho com as casas dos «brasileiros», que são as habitações dos emigrantes que retornaram ricos do Brasil nos finais do século XIX.
Penso compreender bem a razão da construção da casa do emigrante, desenquadrada com o urbanismo tradicional da aldeia. Quem saiu daqueles tugúrios e foi para terras longínquas, em cata de melhor vida, não podia voltar para habitar as casas que lhe lembravam as misérias que ali tinha passado. Tinha de erguer ninho novo, moderno e até ostensivo, em sinal do desafogo que a emigração lhe proporcionou e em razão do mundo novo que descobriu.
Caro Leitão Baptista:
E esse facto de a casa tradicional espanhola nada ter a ver com a casa tradicional portuguesa (mesmo bem juntinho à fronteira, como na Lajeosa, Aldeia do Bispo, etc) nunca levou ninguém a questionar-se, porque seria?
Eu tenho-me questionadso, só que não encontro elementos ou respostas.
O que eu acho é que , ao focar-se tanto a nossa ligação a Espanha , por causa das Capeias, se esquece o resto , como as casas e a música. Aliás, na música é notória a nossa aproximação às Beiras (Alta e Baixa) e nada a Espanha, no que em Trás-os-Montes já é diferente (uma vez que alguns dos temas até são cantados em castelhano). Excelente crónica, portanto, como ponto de partida para algo a que estamos ligados.
Olá João Duarte, encontrei umas fotos do couto do mosteiro, assinadas por João Duarte 88. Será o mesmo?
Obrigado João Duarte.
Eu considero também que temos de facto muitos testemunhos que provam a nossa ligação cultural à Beira Alta, na qual nos integramos de facto. Quanto à influência de Espanha ela é notória em variados aspectos, como nalguns termos da nossa linguagem popular, em certas ementas na nossa gastronomia, no gosto pelas touradas, mas há de facto muitas situações em que nos identificamos por inteiro com a Beira. O caso das habitações antigas é manifesto, como bem referes. A casa antiga do lado espanhol nada tem a ver com a casa tradicional do nosso concelho.
Quando os nossos Governantes, cada vez mais, tomam medidas para desertificar as nossas Aldeias, sabe bem recordar e lembrar as coisas boas que as caracterizavam, tais como as casas, a palavra, as ajudas mutuas, etc.
Apesar de tudo, eu fico muito satisfeito de ver que muitos conterraneos fizeram um esforço e recuperaram muitas casas, mantendo a traça original e inclusive algumas que estavam pintadas fotam picadas ficando com a pedra a descoberto.
Dou um exemplo da Aldeia de Vale das Èguas onde cada vez mais casas estão recuperadas e algumas pelos netos que há muito anos não nem sequer a visitavam nas férias.
Temos que ser todos nós a sensibilizar a Juventude para as belezas das Aldeias e são muitas, porque infelismentes as Cidades, cada vez nos oferecem menos.
Grande crónica de Leitão Baptista. Esta é uma temática que me interessa bastante, tal como a música de tradição oral.
Considero muito curioso que as casas tradicionais das nossas aldeias do concelho de Sabugal tenham a traça das casas tradicionais beirãs. Como se sabe, Aquilino Ribeiro era do concelho de Sernancelhe e as casas do concelho de Sabugal em nada diferiam das de Sernancelhe. Estou a escrever desde Aguiar da Beira, bem pertinho de Sernancelhe (as Terras do Demo).
O que me tem intrigado ao longo de anos é o facto de se falar tanto da nossa relação com Espanha e vai-se a qualquer localidade espanhola que faz fronteira com a raia sabugalense e as casas não são iguais às portuguesas. Porque será? Já perguntei e ninguém me sabe responder. Se virmos o exemplo de La Alberca (Al-Bereka), bem perto de Portugal, uma aldeia com muito de árabe, não vemos nada que se realacione com as casas portuguesas. Nada tenho contra o intercâmbio com Espanha (antes pelo contrário) , mas há especificidades portuguesas nesta temática das casas tradicionais (lembro-me sempre da casa da minha avó, onde eu nasci, que era assim, de pedra, com tudo o que era comum numa dessas casas) e na música tradicional, que já foi motivo de uma crónica minha neste blog e o será de mais.
Considero que , por exemplo, em termos de música, Trás-os-Montes tem muito maior ligação a Espanha do que temos nós, do concelho de Sabugal.
O facto de termos a Capeia (que também existe nas localidades espanholas vizinhas, embora sem forcão), não nos torna diferentes do resto das Beiras em muitas outras coisas. Quer se queira, quer não , o Sabugal é da Beira Alta. As casas de pedra tradicionais são uma prova disso.
No Soito há , ainda, algumas (poucas) casas destas que mantêm a traça.