Silvestre da Silva era um fidalgote minhoto que não atinava com um modo de viver e, de experiência em experiência, descobre que nada suplanta a vida do campo, onde os regalos do estômago ofuscam tudo o resto e proporcionam a maior das felicidades.
«Coração, Cabeça e Estômago» é uma novela humorística de Camilo Castelo Branco, onde um homem, Silvestre da Silva, procura um sentido de vida. Primeiramente procurou a felicidade no amor, ou melhor, no «coração». Foram intensas e autênticas as suas paixões amorosas, mas as mulheres desiludiram-no, até porque raramente corresponderam ao seu declarado amor.
Decepcionado, Silvestre decide desenvolver o seu intelecto, a «cabeça», e passou a escrever nos jornais da época. Porém, as suas doutrinas andavam desfasadas com as teorias dominantes e os artigos que escreveu geraram reacções adversas, dentre as quais a de um advogado do Porto, que dele se queixa e o faz ir parar à cadeia por ordem judicial.
No final, Silvestre volta-se para os prazeres mais materiais da vida e regressa ao campo, às suas origens, onde redescobre o valor da óptima e variada cozinha minhota, que lhe contenta o «estômago».
A revelação da importância da vida serena do campo e da importância do bom trato alimentar teve-a Silvestre em casa de Tomásia, a filha morgada do sargento-mor de Soutelo, com quem viria a casar.
«O pai de Tomásia, erguida a toalha da mesa, onde almoçávamos, às sete horas da manhã, sopa de ovos, salpicão, batatas ensopadas com toicinho, e toicinho cozido com batatas, disse-me que sua filha estava casadeira, e ele disposto a casá-la comigo, se eu quisesse. Antes que eu respondesse, inventariou os seus cabedais, o valor do património dos seus quatro irmãos padres, os quais estavam presentes, e unanimemente disseram que tudo deixavam por escritura a sua sobrinha.»
Silvestre pensou no assunto e, passados alguns dias voltou a casa do lavrador, onde aceitou comer na cozinha, correspondendo a um pedido expresso de Tomásia:
«Encontrei sobre a mesa do escabelo, adorno da lareira, uma tigela vermelha vidrada com requeijão, e um pichel reluzente de estanho a transbordar de espumoso vinho verde. Tomásia sentou-se do outro lado, e comeu e bebeu como a filha de Labão com Jacob.
Conversámos nestes termos também patriarcais:
– Quantos anos tem a senhora Tomásia? – perguntei.
– Vinte e seis, feitos pela Santa Luzia.
– Muito bem empregados. Admiro que vossemecê ainda não seja casada!
– Ainda não é tarde.
– Também digo: mas quem é tão bonita como a Srª Tomásia onde quer acha um noivo.
– Sou sã e escorreita, Deus louvado. Se lhe pareço bonita, isso é dos seus olhos. Coma uma colher de requeijão, e beba, que o vinho está muito fresco.»
Pois seria destino de Silvestre casar de facto com aquela rapariga desempenada, «de carne e osso mais que o ordinário» e «mais larga de cintura que nos ombros», que nunca experimentara doença e que «almoçava caldo de ovos com talhadas de choiriço».
Já enlaçados, viveram ambos para a degustação da boa culinária minhota, ganhando fama pelo farto e saboroso comer de sua casa, de mesa sempre posta para os amigos, que cresceram a olhos vistos.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
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