«Alto da Senhora de Fátima», na estrada do Souto da Casa, o arruinado convento franciscano, onde, reza a tradição, viveu retirado o «nosso» Gil Vicente em fim de vida. Vinha cansado da viagem e sentei-me no alpendre da pequena ermida. Lá fora, o Sol de Outono brilhava sobre os muros da cerca, sobre as escadas de granito e o carreirinho em terra batida, que da estrada subia por entre o arvoredo, até ao cruzeiro. Aos meus pés estendia-se a fértil planície da Cova da Beira, onde florescem oliveiras, milho, fruta e videiras, pequenas aldeias e quintas nos seus muros brancos e telhados vermelhos; e para além delas, os contrafortes acinzentados da Estrela, que subiam a pique desde o Tortozendo.
O meu olhar deteve-se numa quinta delicadamente pousada em socalco sobre uma pequena encosta, onde iam e vinham trabalhadores com cestos carregados. Sobre uma elevação, junto à casa principal, dois imponentes ciprestes, erguiam ao céu a sua chama verde. Fizeram-me recordar os ciprestes à entrada da minha aldeia, à sombra dos quais tantas vezes descansei quando vinha do campo.
Um pardal solitário e sonhador equilibrou-se precariamente numa tenra ramada de pinheiro. Duas lagartixas vieram brincar na base do cruzeiro. Corriam velozes, às vezes paravam, cabeças levantadas, a gozar com deleite o ar fresco que subia do vale, depois escondiam-se nas fendas de uma pedra, deixando as caudas de fora. Enfadando-se da brincadeira, acabaram por desaparecer.
Estas observações eram alegres e felizes como o íntimo dos meus pensamentos. Tinha estudado nesta região há longos anos e naquele momento deliciava uma vez mais o olhar naquela verde liberdade, o meu espírito voava de regresso aos dias em que usava sotaina e aos passeios felizes da minha juventude, como se nas minhas recordações a paisagem viesse desfilar em imagens, uma a uma, diante de mim.
Surpreendido pelas saudades, comecei trautear entre dentes o estribilho duma velha canção, aprendida nessa época feliz: «Jamais ne sont oubliés les amis du temps passes.»
Mais uma vez me veio à memória, a conversa que tivemos há precisamente trinta e dois anos, aqui sob este mesmo alpendre o Lúcio o Camejo e eu, quando ainda tinha uma grande fome em conhecer o mundo e os homens, a essência do amor.
Eu continuaria os estudos eclesiásticos e Filosofia, o Lúcio seguiria a carreira militar como o pai, o Camejo leis. A partir deste dia os nossos caminhos divergiriam para sempre. Agora vejo quão inconscientemente feliz era nessas minhas ilusões! Como se alguém pudesse conhecer os homens, a essência do amor… O amor! O meu caminho, é bom de ver, enviesou, e depois de uma breve incursão na Teologia e Filosofia, acabei em Direito também!
Olhei de novo a paisagem. Sobre o vale pairou um aroma a folhas secas, e o crepúsculo deu um repentino tom azul e sombrio à Estrela e laranja ao céu. Então julguei ver na sombra projectada do cruzeiro o espectro do meu passado, e senti um arrepio de frio na espinha. De um pulo levantei-me, vesti o casaco, e com passos ligeiros desci pelo carreirinho à beira da floresta, em direcção à estrada que serpenteia até à cidade.
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente
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