O livro dos Génesis, que traz a história de Caim e Abel (Gen 4, 1-18), foi um dos muitos livros bíblicos, na versão sacerdotal, escritos durante o cativeiro da Babilónia. É por isso que a Bíblia traz histórias e mitos do Médio Oriente, como o mito de Abel e Caim que é uma reinterpretação do mito babilónico de Dumuzi e Enkidu, relacionando-o com o Deus dos judeus.
Dumuzi e Enkidu eram divindades do mito babilónico; o primeiro era a divindade dos povos sedentários (agricultores) e este, a divindade dos povos nómadas (pastores). Os dois ofereceram presentes a uma Deusa que ambos cortejavam. Esta aceitou apenas o presente de Enkidu. Dumuzi, com ciúmes, matou Enkidu semeando, assim, o ciúme, a vingança e o ódio eterno.
O mito nesta configuração fundamenta e legitima à partida os confrontos e conflitos entre os povos sedentários (agricultores) representados por Dumuzi e os povos nómadas (pastores) representados por Enkidu, constantes nessa época no vale da Mesopotâmia, pois muitas vezes as cabras e cabritos dos pastores comiam a produção dos agricultores, gerando conflitos.
Os pastores, nómadas foram por isso sendo afastados para locais mais remotos porque o seu modo de vida passou a ser incompatível com as regras sociais e as estruturas de poder que os povos sedentários estabeleceram.
Não esqueçamos que o patriarca Abraão era o chefe de um clã de pastores nómadas, originário da região de Ur, que em resultado da pressão agrícola das novas cidades (como Ur, Uruque, Lagach e Eridu) no crescente fértil, emigrou em busca das pastagens de Canaã.
E não é só na Bíblia que este conflito aparece. No D. Quixote, vol.I, cap. XII, XIII e XIV, Cervantes descreve a vida num acampamento desses pastores nómadas e os amores contrariados entre Crisóstomo e a bela pastora Marcela, que reflectem, ainda no séc. XVI, a diferença irreconciliável destes dois modos de vida.
Substituindo Enkidu, Dumuzi e a deusa babilónicos e pondo no seu lugar Caim, Abel e o Deus de Israel, compreendemos melhor o mito bíblico:
No mito babilónico, Dumuzi foi condenado a passar seis meses por ano no Inferno, tal como no mito grego a deusa Prosérpina.
No mito bíblico, depois da «punição» de Deus, Caim não pode mais ser agricultor, pois «Serás amaldiçoado por essa terra que abriu a boca para receber de tuas mãos o sangue do teu irmão. Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais o seu produto. Tu andarás errante e perdido pelo mundo» (Gen 4,11-12).
Caim vai ter que andar errante e perdido pelo mundo (Gn 4,13) para ver como era a vida de seu irmão.
Apesar dos cabritos e cabras comerem a produção dos agricultores no mito de Dumuzi e Enkidu, eles adubavam o solo. Uns necessitam dos outros; complementavam-se.
Com a morte de Abel o solo torna-se infértil. E como tal, Caim tem de fazer pastor.
Por isso é muito importante conhecer o contexto em que os livros bíblicos foram escritos, para se interpretarem correctamente.
Esta passagem do Génesis não tem nada a ver com a crueldade de Deus. É também muito mais que um texto sobre a inveja entre os homens, pois apela à tolerância e cooperação entre os homens.
O que ele ensina é que a inveja é, sem dúvida, um dos sentimentos mais destrutivos. Quando nos deixamos dominar por este sentimento, perdemos a liberdade do ser e sujeitamo-nos à servidão do nada. Descemos às profundezas do inferno como Dumuzi. Andamos errantes e perdidos pelo mundo como Caim, numa vida sem o amor que dá o verdadeiro sentido à existência humana.
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente
Em se tratando de mitologia, os aspectos retratados no mito acima, com suas correlações babilônicas, aludem aos arquétipos junguianos de anima e animus, polaridades que relacionam-se ao feminino e masculino no homem e na mulher, respectivamente. Assim, quando tenta-se assassinar um ou outro, a psique entra em falência, ocasionando distúrbios no processo de desenvolvimento da personalidade.
Carlos Henrique
Freud disse um dia que a vida é como o caminhar, perde-se e recupera-se o equilíbrio entre cada passo
Novas ideologias reformulam as velhas na tentativa de criar novos equilíbrios sociais. A evolução da sociedade também se parece com o acto de caminhar.
As ideologias políticas, apenas alteram o que pertence ao colectivo e superficial que permite caminhar.
Alterar em profundidade requer um acto solitário, individual e de um conhecimento de natureza intransmissível, mas só com ele o desequilíbrio necessário ao caminhar desaparece, para dar lugar a um novo paradigma evolutivo que permite correr.
João Valente:
Sem dúvida que a inveja é destrutiva, tanto para o invejoso, como para o invejado. Aliás, este ditado popular encerra isso: Nunca o invejoso medrou, nem quem ao pé dele habitou. Não me canso de dizer isto: o homem muda, sem deixar de ser ele prório, tem os mesmos defeitos desde há milénios, já a Biblia nos fala da inveja, no século XXI, ela está presente no homem. Que Deus? Que ideologia política nos fará mudar? Seremos assim até ao fim? Responda que souber…Eu não sei.