A última polémica lançada por José Saramago aquando do lançamento do seu novo livro «Caim» transportou-me para os bancos da catequese, ou da doutrina como na altura também era conhecida. São muitos anos e, para o bem ou para o mal, desses tempos não tenho recordações de maior, aliás nem do nome ou da imagem das catequistas me lembro.

Desses tempos imagens claras tenho da primeira confissão que me levaria no dia seguinte à primeira comunhão e passar a partir daí a poder participar em pleno da eucaristia, recebendo o corpo de Cristo.
A confissão representava o assumir pela primeira vez ser pecador (pobre criança inocente) e perante o representante de deus na terra relatar um a um aqueles pecados, que em conjunto todos os putos iam inventariando e inventando: menti, não obedeci, bati, esqueci de rezar, disse palavras feias (actos e omissões) porque os pecados por pensamento, ou ainda não eram sentidos ou simplesmente eram omitidos.
Aquela tarde, qual ritual iniciático, a excitação e a ansiedade eram maiores que a entrega ao divino e ao sagrado e nada permitia viver qualquer tipo de espiritualidade. Sempre que um de nós saía da confissão, todos corríamos não só para sabermos se tinha dito todos os pecados mas, essencialmente, para ouvir qual a penitência recebida, e assim, valorar numa escala, somente nossa, o grau de pecador do nosso amigo. Não era muito diferente a forma de estar naquela tarde da forma vivida, anos mais tarde, à saída de um exame ou quando a nota desse exame era afixada, pelo que, digo eu agora, a catequese não era sentida por nós, por mim pelo menos não o era, diferente das aulas dadas no banco da escola. Fazia parte do aprender e da vivência em comunidade e jamais em momento algum equacionaria a validade e o porquê da minha participação.
A noite seguinte foi de insónia e de alguns pesadelos. Sabia que a hóstia que iria receber no dia seguinte não poderia tocar, em caso algum, nem que ao de leve fosse, nos dentes. E, esse sim, seria para mim e provavelmente para todos o oitavo pecado capital. Não sei se este aspecto foi muito marcado na preparação da comunhão, ou se fui eu que assimilei essa proibição como pecado imperdoável. Porém, o não poder tocar com a hóstia nos dentes sempre me deixou intrigado e ainda hoje não descobri o porquê.
Do dia da cerimónia nada me lembro, pelo que pressuponho que o dia tenha corrido como previsto – fita no braço e compenetrado na tarefa, não devo ter cometido qualquer pecado assinalável.
Fui crescendo, tornei-me adulto e as discussões sobre deus e sobre a Bíblia foram acontecendo, umas vezes mais acaloradas outras vezes mais indiferentes, pelo que deus nunca deixou de estar presente, mesmo incluindo-me eu no grupo dos ateus. A presença do divino, mesmo para um ateu com formação religiosa é constante, nem que seja para o contradizer.
A Bíblia só a desfolhei, para além das passagens lidas e ouvidas na missa ou nos bancos da catequese, já adulto e na faculdade. Reconheço ser um livro fascinante e de uma riqueza literária e histórica enorme. Um livro que pertence à literatura mundial, e vejo-o como fonte de estudos históricos para além de fonte de inspiração espiritual. Alguns dos conflitos ainda hoje existentes têm eco nas suas páginas – não podemos esquecer «a terra prometida» a Abraão e as suas consequências e condicionalismos no comportamento de Israel ao longo dos tempos.
Não sendo crente não partilho do ponto de vista cristão de que os seus livros foram escritos sob a inspiração directa de deus, não podendo por isso fazer uma leitura literal mas sim simbólica dos mesmos, na forma de relatar e explicar acontecimentos e factos históricos, ou de transmitir normas, valores e comportamentos sociais para aquela época.
Não tenho dúvida alguma, no seguimento do que diz Saramago, que a bíblia nos apresenta um deus violento e injusto, que provoca a ira e faz irmão matar irmão, deus este descrito essencialmente no velho testamento, mas também nos apresenta um deus do bem, um deus misericordioso e do perdão que dá a outra face quando lhe batem, descrito no novo testamento. No fundo a Bíblia dá-nos:
– Um Deus feito à semelhança do Homem – por isso tão complexo e fascinante.
E, é por ser complexo e fascinante que ainda hoje crentes e não crentes o discutem e surgem polémicas iguais às que actualmente temos vivido
Sobre esta problemática acho interessante ler o livro escrito por Jack Miles (ex-jesuíta) – «Deus Uma Biografia» editado pela Editorial Presença, cujo tema principal é «acerca do senhor deus enquanto protagonista de uma obra clássica da literatura universal». Esta personagem literária baseada no antigo testamento que Miles leu sem a mediação da igreja, revela-nos deus como uma amálgama de personalidades variadas, concentradas numa única personagem.
Para quem o desejar fazer – boa leitura.
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«Largo de Alcanizes», opinião de José Manuel Monteiro
Presumo que não aconselha, então, a leitura de Caim…
Excelente texto, parabéns.