Fazendo uma pausa nas representações alegóricas referentes ao Cortejo de Oferendas que teve lugar no Sabugal, em 1947, a crónica de hoje refere-se a uma das figuras mais típicas da vila do Sabugal, o Fernandinho. Para a semana regressa uma nova crónica (com fotografia) sobre outra localidade participante no Cortejo de Oferendas. Não perca…
De seu nome Fernando Sousa, o Fernandinho era filho único de uma das pessoas mais ricas do Sabugal. Com efeito, o pai do Fernandinho (natural de Pedrógão de São Pedro, Penamacor) deixou uma parte dos seus bens ao sr. David Alexandre para que este tomasse conta dele.
O Fernandinho era uma pessoa muito querida no Sabugal. Toda a gente gostava dele e era muito acarinhado pelos sabugalenses. Ao contrário do que acontecia em Pedrógão de S. Pedro onde toda a gente o tratava por tu e o desprezava, no Sabugal o Fernandinho era sempre tratado por senhor.
Uma maneira de se saber, no Sabugal, se uma pessoa era mal-educada era quando alguém tratava o Fernandinho por tu. No entanto, ele tratava toda a gente por colega. Uma das suas imagens de marca era o seu chapéu e o facto de andar sempre muito bem vestido.
Uma das facetas mais características do Fernandinho era que ele comparecia em todas as inaugurações de serviços públicos ou outros, mesmo sem ser convidado.
Aquando da inauguração da agência do Banco Português do Atlântico, no Sabugal, ainda antes do 25 de Abril de 1974, o Fernandinho esteve presente e tratava todos os administradores do banco por colegas. Alguns dos presentes, não o conhecendo e vendo-o tão bem vestido, até pensavam que ele era mesmo administrador. Só descobriram que não era quando um dos que o não conheciam lhe ofereceu champanhe e o sr. Aristides disse: «Não dês bebida a esse gajo!»
Ele nunca dizia a idade, dizia sempre que tinha ido à inspecção militar com o Adérito Carreto.
O Fernandinho tinha autorização para se sentar em qualquer audiência do Tribunal Judicial, ao lado dos advogados. Os juízes deixavam que isso acontecesse por saberem quem ele era.
O pior aconteceu, um dia, quando o Fernandinho concordou com uma afirmação (no final de um julgamento) de um juiz que era novo no Tribunal e disse em voz alta na sala de audiências: «Tem toda a razão, senhor doutor juiz!» O juiz ordenou que o retirassem da sala e queria, mesmo, mandá-lo prender por ter ofendido o Tribunal.
O Fernandinho passou a referir-se a esse juiz como o «juiz mau». Quando alguém lhe perguntava… «Então Fernandinho, não foi ao Tribunal?», ele respondia… «Não, está lá o juiz mau!»
O Fernandinho participava em todas as reuniões da Assembleia Municipal, que se realizavam no Sabugal, sendo acarinhado por todos os eleitos.
Passeava muito pelo Sabugal. Era muito natural encontrá-lo a passear junto à, agora, praia fluvial ou no centro da vila.
Percorria todos os estabelecimentos comerciais do Sabugal (O «Depósito», o sr. Rato, a relojoaria do João Manata, etc.), contando as suas estórias, nomeadamente que «A Viúva já comprou uma camioneta nova» ou que «Já veio o carro novo do meu primo Xico».
Quando alguém queria espalhar um boato, no Sabugal, bastava que o contasse ao Fernandinho, que ele se encarregava de o ampliar, contando-o a toda a gente.
O Fernandinho faleceu há cerca de oito anos. O seu funeral foi um dos maiores de que há memória na vila do Sabugal.
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«Memória, Memórias…», crónica de João Aristides Duarte
O Fernandinho que para mim e até ao fim da vida foi sempre chamado por Nani, era um cliente muito especial no Café do Sr. Abílio (meu pai).
Todos os dias ia tomar o garoto numa chávena grande, o leite tinha que levar a nata, senão dizia logo que não era bom, sentando-se sempre no mesmo lugar. A moeda ia num pequeno porta moedas que ele cuidadosamente guardava. Passava horas sentado a escrever em pequenas agendas, até as encher de palavras e palavras que ele ia repetindo.
O Nani, era muito respeitador, mas atendo e tinha reacções talvez incómodas ditas por outras pessoas, mas no nosso Café nunca teve problemas, nada se lhe levava a mal.
Um dia estava um cliente ao balcão a tomar café, que naturalmente deu um espirro, o Nani da mesa donde estava falou ” não há circo Sr. Doutor… então porquê Fernandinho?…Está o urso constipado…”
Era uma pessoa muito interessante e muito querida por todos e também em quem se podia confiar, quando em pequena e a minha mãe me queria mandar para casa da avó, era só dizer-lhe, agarrava-me a mão com uma força que nunca conseguirei esquecer e só me deixava na casa da avó sem um único problema.
O Nani fará sempre parte das nossas recordações e é daquelas pessoas que passou pelo Mundo e deixou a sua marca… nunca o esquecerei.
Natália Bispo
Para a São Pereira:
Podia ser Traia em Santo Estêvão, mas nos Fóios e em toda a zona da raia sabugalense era conhecido com Tróia.
Duarte e o nosso (Manel Jé Deolinda) não merece artigo? Um abraço. Manuel Russo
Desde já venho emendar um pequeno erro: o referido Troia de Santo Estêvão, não era Troia mas Traia, um apelido da nossa terra, como é
habito nesta freguesia, onde todas as familias têm um apelido muito caracteristico.
Desta figura tão pitoresca, que passeava as ruas do Sabugal, quero deixar bem claro que, o sr. Antonio Traia, quando não estava alcoolizado, era uma pessoa razoavel e trabalhadora.
És tu! Quando ia comprar o leite à D. Gina ali ao pé do Fora d’Horas cheguei a ter uma boas conversas surrealista com o Fernandinho. Acho que é daí que vem o meu gosto pelos Monty Python. Bem haja Fernandinho.
Boa crónica!
Também me recordo bem do Zeca Graxa e do Tróia, este bem mais tontinho que todos.
Quem são os modernos de que se fala?
Para o António Emídio:
Claro que houve passado. Só os “modernos” o esquecem.
Para Paulo Leitão Batista: lembro-me bem do Tróia que era também uma figura bem típica. E também me lembro do Zeca Engraxa. Mas não tenho fotografias.
Para o sr. João Robalo: peço desculpa se o ofendi, mas não foi minha intenção. As informações que recolhi, de fonte que reputo de fidedigna foram nesse sentido. Se calhar a minha fonte generalizou. Mas, claro que aquilo que foi escrito sobre o facto de o Fernandinho não ser bem tratado no Pedrógão se referiam a algumas pessoas e nunca a todas. Mais uma vez apresento as minhas desculpas. E claro que tem razão na frase “quem não se sente não é filho de boa gente”.
Post cheio de humanidade…
Sr. João Duarte
Sou leitor das suas crónicas no Capeia Arraiana e no jornal Nova Guarda.
Sou natural de Pedrógão de S. Pedro, e fui ofendido pela sua generalização, em relação aos naturais desta freguesia. Poderia haver em Pedrógão, pessoas que não tratavam o Fernandinho com a devida educação e urbanidade, mas havia e há nesta terra, muitas pessoas que tratavam o Fernandinho com educação e carinho. Fui aluno no Colégio de S. José (Rocha) e no Liceu da Guarda na década de 70. Nesta época os transportes não abundavam como hoje, nas minhas deslocações a Pedrógão utilizava os transportes públicos. Durante as longas quatro horas de espera no Sabugal pela camionetada da Rodoviária que liga o Sabugal a Castelo Branco, dispunha quase sempre da companhia do Fernandinho, em que ele me informava de todas as notícias. No momento da subida para a camioneta nunca se esquecia de me recomendar “…cumprimentos ao Sr. Padre Tarcisio…” (penso que tambem foi pároco no Sabugal).
Depois do falecimentos dos pais o Fernandinho ficou ao cuidado do Sr. David Alexandre, e deslocava-se menos vezes a Pedrógão e deixei de o contactar.
Sr. Duarte tenha mais cuidado com as sua generalizações, neste caso são injustas para muitas pessoas, “quem não se sente não é filho de boa gente ”
Cumprimentos
João L. Caria Robalo
Nesta epóca de alguma crispação e por que não dizer de algum sectarismo, faz-nos bem relembrar estas “figuras” que faziam o pleno como muito bem refere o Paulo Leitão.
Temos um livro na forja?
Parabens João Duarte
Importante testemunho acerca de uma figura verdadeiramente típica da vila do Sabugal.
O Fernandinho era de facto acarinhado e respeitado por todos, novos e velhos, e tinha carta branca para entrar em qualquer lugar. Quando eu era garoto tinha sempre a sua companhia no lugar das crianças na missa dominical, que era em bancos corridos à frente do altar (rapazes de um lado e raparigas do outro). Ao sentar-se ali, o Fernandinho, que era já um homem adulto, fazia com que o sentíssemos como um de nós, embora ele fosse avesso a brincadeiras com a «canalha». O padre Souta, que testamentariamente, era um dos seus tutores, acarinhava-o muito e aceitava a sua companhia, o que de resto sucedia com toda a gente, mesmo com os magistrados que passaram pelo Sabugal, como muito bem diz o cronista João Duarte.
Houve de facto figuras no Sabugal que merecem uma referência. Para além do Fernandinho recordo o Troia (nascido em Santo Estêvão e adoptados pelos Fóios) e o Zeca Engraxa (assim chamado por viver de engraxar os sapatos na via pública). Outros mais houve e há no concelho do Sabugal e era bom que o João Duarte, que tem veia literária, nos falasse sucessivamente dessa gente.
Paulo Leitão Batista
Duarte:
Obrigado por estes momentos de nostalgia.
Os mais jovens, como não têm presente, nem perspectivas de futuro, pensam que não houve passado, mas houve…