Hoje destacamos o jornal «Público» pela sua chamada de primeira página à tragédia que se abateu sobre o concelho do Sabugal. A foto a quatro colunas de Nélson Garrido está titulada «Três dias de fogo devoram floresta de um concelho pobre».
«Maria de Lurdes salvou as vacas do incêndio, mas perdeu as cabras» é o título da crónica da jornalista Ana Cristina Pereira sobre os trágicos incêndios no concelho do Sabugal que merece honras de primeira página, esta quarta-feira, no jornal «Público».
O Capeia Arraiana reproduz, de seguida, o excelente artigo do jornal «Público» onde «ouvimos», mais uma vez, o relato na primeira pessoa de estórias de sabugalenses humildes que viram a sua vida dramaticamente alterada por mais de 50 horas de terror provocadas pelos incêndios incontroláveis que tudo destruíram.
«Uma galinha andou a esgravatar atrás da casa de Maria de Lurdes Esteves e pôs um ovo no caminho de terra batida. Atrás da casa, quase não há mato para fazer ninho. As chamas cobriram tudo de negro. “Está tudo desgraçado. Lá foram cinco cabras, dois palheiros de feno, dois carros de bois.”
O seu olhar estende-se até ao cimo do monte. “Passaram aí a dizer para botar os animais na rua.” Obedeceu. A noite engolira o domingo. Quinta da Ribeira da Nave, no Sabugal, transformara-se num “inferno”. As chamas cercaram a casa. “Para onde fugir com os animais?”
O vizinho, Orlindo Pires, julgou-a apoquentada. Mas a Quinta de Ribeira da Nave vivia o pior sinistro desta época de incêndios. Ele também “estava numa aflição”: “Nós até a água da piscina tirámos para ajudar os bombeiros!” E perderam carvalhos, macieiras, pessegueiros, vinhas, um palheiro de feno.
O incêndio deflagrou por volta da 1h00 de domingo entre a Moita e o Casteleiro. Chegou a ser dado como extinto à hora do almoço. Domingo à tarde, descontrolou-se. Na segunda-feira, tornou a parecer domado e a descontrolar-se. E ontem também.
No domingo à noite, como muitos vizinhos, o marido de Maria de Lurdes ocupou-se da casa. Pôs-se a regá-la. Tantos fardos de feno armazenados nas traseiras! “Se o lume chegava ao feno, ia casa, ia tudo.” A mulher pegou nas duas vacas e levou-as para o ribeiro que corre, fino, a uns metros. Três bombeiros mergulhavam as cabeças no poço. O fumo era denso. Ardiam-lhes os olhos. Salvou as vacas, as três galinhas, o burro. As cabras é que não. “Bem as ouvia berrar!”
Por volta das cinco da manhã de segunda-feira, uma bombeira pediu para usar a casa de banho dos Pires e perguntou se não havia fruta. Carmelinda Pires, que “é muita dada”, pegou na fruta que tinha e deu-a toda. E leite, pão, queijo, presunto.
Na segunda à tarde, Orlindo correu para Dirão da Rua.”Até os pés se me desgastaram de tanto andar.” Tem feridas nos dedos. “Os bombeiros não conseguem fazer tudo. Já viu a extensão do fogo?” Alguns especialistas falam em 15 mil hectares. Em redor das povoações de Sortelha, Urgueira, Santo António, Alagoas, Moita, Casteleiro, Santo Estevão, Pêga… Pouco escapou no concelho. “Um homem com 150 ovelhas já foi ao Fundão ver se lhe alugam umas quintas.”
Ontem, quando Orlindo saiu de Dirão da Rua eram já umas 9h00. Por volta dessa hora, o namorado de Sara Ferreira viu lume na estrada que liga Sortelha ao Sabugal. Chamou-a. Veio ela, o namorado, o irmão, o padrinho, os pais, com pás, com ramos a tentar salvar o pasto da vizinha. Os moradores mal se têm deitado. “Os fogos andam tanto!”
À hora do almoço, no posto de comando montado no Espinhal, descansavam dezenas de bombeiros de norte a sul do país. O comandante Operacional Distrital da Guarda, António Fonseca, dava uma volta pelo terreno: “Temos homens espalhados por todo o perímetro, neste momento está tudo controlado.” Às 14h56, o sinistro reacendia-se em Quinta do Anascer e para lá eram mobilizados 340 elementos apoiados por 114 viaturas, um helicóptero de ataque inicial, um helicóptero bombardeiro pesado, dois aviões de ataque inicial e três aviões bombardeiros pesados. Entraria em rescaldo às 21h00.
Desolada, Maria de Lurdes já nem dava pelo movimento. Quando o seu “inferno” acabou, levou as mãos ao céu: “Graças a Deus, salvou-se este abrigo de gente pobre.” Ainda esperou pelo regresso das cabras. Só uma o fez: “Coitadinha. Está toda inchada. Está toda queimada. Está cega. Nem come.” Maria de Lurdes não espera que ela se salve. Um vizinho já lhe ofereceu uma cabrinha. O campo de milho “está tostado”. Nem imagina como estarão as batatas debaixo da terra. “Eu e o meu marido não sabemos ler. Donde a gente se governa é no campo. Foi donde a gente criou os filhos.”
Nem reforma tem ainda: “Nunca paguei Caixa. Até para pagar a do meu homem era à rasca!” Foi à Segurança Social em Abril, depois de completar 65 anos. Mandaram-lhe uma carta a pedir uma fotocópia do bilhete de identidade. Levou-a um vizinho. Ela dera “cabo do pé esquerdo – não podia andar”. E não tem dinheiro para táxi.
jcl (com jornal «Público»)
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