Há dias lançaram-me um desafio para uma crónica sobre as opiniões do Dr. Leal Freire a respeito do Estado Novo; o qual, sendo novo, não tinha novidade alguma, porque era salazarento e bolorento.
Não discuto o valor das opiniões do Dr. Leal Freire (de quem curiosamente tive idêntico percurso académico – escola, seminário do Fundão e Direito), porque daria muito pano para mangas e para não sujeitar os leitores à brilhante e previsível contestação, à correspondente réplica e sucessivas tréplicas de ambos.
O que aqui está em causa não é tanto o demérito das convicções do Dr. Leal Freire, mas a razão de ser das mesmas, porque o que motivou o repto é o absurdo delas num homem tão inteligente e culto. Este é pois o objecto deste breve post; não outro.
Mutatis mutantis, a boa impressão que tem o Dr. Leal Freire do regime Salazarista no período longínquo da segunda guerra, lembra-me a analepse temporal que o meu avô Lourenço Martins, nos seus 92 anos de cãs alvíssimas, fez a partir de certa altura da sua vida, regressando às memórias da meia-idade, que foi o período da segunda grande guerra e da exploração do volfrâmio.
A diferença entre Dr. Leal Freire e o meu avô analfabeto sobre a segunda grande guerra diverge apenas pelo grau de instrução de cada um; o Dr. Leal faz uma elaborada análise política, o meu avô reduzia-a aos efeitos na economia familiar.
Esclareço que aquele estádio de regressão do meu avô no tempo foi cada vez mais longe, à medida que envelhecia, a ponto de se alienar completamente do presente.
Na verdura dos meus anos, atribuiu aquela obsessão do meu avô pela segunda grande guerra à senilidade dos seus 92 anos, mas hoje que penso maduramente, vejo que tinha uma causa mais profunda: todos nós à medida que envelhecemos e sentimos aproximar o desenlace natural da vida, somos tomados por uma cada vez maior nostalgia do passado. «Que há saudades nos homens, é evidente; que há homens saudosos não pode negar-se», já o afirmava José Marinho na sua Teoria do Ser e Da Verdade.
Toda a Saudade parte da morte que é por antonomásia a suma ausência. E a partir dela diferenciam-se dois caminhos: Uma promoção que a ultrapasse pela negação do espaço e do tempo futuro; ou retorno, que supere a morte pela fuga ao espaço e ao tempo presente.
O primeiro caminho é o da generalidade da ficção literária e foi seguido por Bernardim Ribeiro, Francisco Manuel de Melo e António Patrício, entre outros.
A Saudade do fim da vida é um exemplo do segundo caminho; um desejo de superação da morte pelo regresso ao passado, dominando o tempo com estados de ausência ao presente em que as lembranças agradáveis do passado dão sentido e consistência aos passos que a Saudade foi gravando sobre a vida.
Foi também este segundo caminho o seguido na Mensagem de Pessoa e obra de Pascoais, os poetas mais genuínos da portugalidade.
É este binómio Lembrança/desejo que caracterizando a Saudade, provoca prazer/dor numa sucessão de momentos diferentes, «um estado de saudade»(Marnos) permanente, nas palavras de Teixeira de Pascoais, que também é válido para as nações antigas e por isso serve para caracterizar a alma portuguesa, como tão bem fez Cunha Leão em O Enigma Português.
A alienação do tempo presente deu-se precisamente, parafraseando o Leal Conselheiro de D. Duarte (o nosso rei – filósofo que estudou a saudade), quando a razão do meu avô se deixou afectar pelo «rijo desejo de voltar ao estado de ausente». Foi também a época mais dolorosa e insensata da vida dele.
Por isso a Saudade, é um fenómeno de sensibilidade; parte do coração e nada tem a ver com a razão; nasce da lembrança do tempo feliz que se viveu e do desejo de regresso a ele, são fenómenos psicológicos e de estado de alma.
«A suydade nom descende de cada uma destas partes (nojo, pezar, desprazer e aborrecimento) mas é um sentido que vem da sensibilidade e não da razão», ainda D. Duarte no Leal Conselheiro.
Ou como dizia Leonardo Coimbra, as saudades «são como pombas de sonho que povoam o nosso entendimento», bastará procurá-las, mesmo que subtilmente, para elas levantarem voo perdendo-se daquele pombal, tão firme no seu ser, como disponível e vazio na sua realidade.
A opinião do Dr. Leal Freire sobre o Estado Novo, explica-se pela mesma Saudade que tinha o meu avô, comum aos homens no fim de vida e que seguem o caminho da fuga ao presente. Possivelmente nem corresponde ao sentimento verdadeiro do Dr. Leal Freire, mas ele nem se apercebe!
É que, segundo Francisco Manuel de Melo, às vezes «a Saudade lembra-nos coisas que antes de ela aparecer nunca amaríamos».
Provindo da Saudade que pertence ao coração, a opinião do Dr. Leal Freire não pode contradizer-se pela lógica. Sentimento e Razão não se tocam…
«E para entender esto não cumpre ler per outros livros, mas cada um considere o seu coração o que já por feitos desvairados tem sentido», ainda D. Duarte no Leal Conselheiro.
Assim, a opinião do Dr. Leal Freire sobre o Estado Novo, é uma extravagância da Saudade que dá aos homens naquela idade. Um derradeiro bater de asas do sonho que lhe povoa o entendimento…
E que podemos nós, contra o infinito intangível do sonho?
«Arroz com Todos», opinião de João Valente
joaovalenteadvogado@gmail.com
Para o Marco antónio: tem toda a razão , mas vá dizer isso a quem escreveu este artigo neste link http://www.cincoquinas.com/index.php?progoption=news&do=shownew&topic=100&newid=1479
Outro erro.
É por este tipo de coisas que me parece errado assumir que tendo mais experiência de vida se pode ter uma visão mais certa e justa do mundo. Nada mais errado. Ser-se mais velho não deve dar estatuto especial no debate de ideias por diversas razões. Uma delas é o do menosprezo da capacidade dos mais velhos, comportamento claramente discriminatório. Na sociedade liberal e da informação em que vivemos, toda a gente tem acesso a informação sem limites. Nos tempos que vivemos não se trata só de querer saber mais, mas também de saber o que fazer com tanta informação. E aí sim, os mais velhos têm mais responsabilidades: reconhecer os erros que foram cometidos e explicá-los para que não o sejam outra vez. Por isso, não me parece legítimo que se sorria com condescendência sobranceira a quem defende coisas como o Estado Novo. Argumente-se!
Há coisas tão evidentes, que nem precisam de ser demonstradas!
Uma delas é o caracter ditatorial, de sonegação de direitos, liberdades e garantias do regime de Salazar.
A argumentação sería inútil, por completamente desnecessária…
Em tempo:
Será que o Dr. Leal Freire ofende ou não ofende alguém , quando escreve isto, sem nomear um único nome:
“Ao contrario de outros que, esses sim, refocilaram na gamela estadual e para estadual, mas que, a vinte e seis de Abril logo correram a declarar-se antifascistas de sempre, embora, funcionários de topo e intelectuais amesendados no SNI.”
Bem gostaria eu de saber quem eram esses que “refocilaram”.
Queria dar os parabéns ao sr. João Valente por este artigo e dizer-lhe que, realmente, a nostalgia é uma coisa terrível.
Tenho 49 anos e sinto nostalgia dos meus tempos de juventude. Não é que, na semana passada, fui a um encontro de antigos camaradas de armas, que cumpriram o serviço militar na mesma unidade, em Coimbra, quando nunca gostei nada de tropa? Só pode ter sido por nostalgia.
“Da adolescência à morte, a vida de Salazar foi uma série ininterrupta de sucessos”
“Sem alardes, sem estiolar a economia ou exigir do povo sacrificios ou restriçoes que não fossem de ordem politica, num apice arrumou as contas publicas, eliminou o deficit restaurou a confiança nos grandes mercados e tornou o escudo em moeda apetecível”
“A campanha de Delgado foi certamente o mais delicado. Mas logo que terminada, Salazar desfez-se com a mesma autoridade de Santos Costa que lhe fora fidelíssimo e de Marcelo, o salta-pocinhas traidor”.
“Internamente, a Nação achava-se perfeitamente estruturada.”
“Era um governo autoritário, mas não ditatorial e, muito menos, fascista ou sequer fascizante”
“Os regimes hierarquicamente estruturados sempre concitaram oposições tendentes á subversão, de que naturalmente têm de procurar defender-se”.
Todas estas expressões entre aspas são da autoria do Dr. Leal Freire e foram publicadas no jornal “Cinco Quinas”.
Se isto não é fazer a defesa do regime do Estado Novo, já não percebo nada de nada. Embora nunca surja a expressão Estado Novo, sabe-se bem que o ideólogo do Estado Novo era Salazar e, portanto, defendendendo Salazar com unhas e dentes (como o faz o Dr. Freire) está-se a defender o Estado Novo.
Mas,enfim , há quem não queira ver.
Sobre as diferenças entre o Estado Novo e o actual Estado nem vale a pena falar, já que o senhor batistaj escreveu o que escreveu, agora, e sei que um opositor ao Estado Novo não poderia escrever o mesmo (se fosse para criticar o Estado Novo) no tempo do Salazar. Afinal existia essa coisa chamada PIDE (um mito?) que parece que dava uns “safanões a tempo” a quem era propenso à subversão.
Caro amigo, não o conheço, mas discordo das suas ideias, e das ofensas ao Dr. Leal Freire, ainda por cima sob a capa de querer compreender, por mim estou certo que sabem mais os velhos do que os novos, quando chegarmos a essa idade mais avançada, se lá chegarmos, já poderemos falar com alguma autoridade sobre a matéria, mas só com alguma. O resto é superficialidade e estultícia. Para mais, o Dr. Leal Freira nunca defendeu o ideal do Estado Novo, nem na juventude nem depois, o que demonstra que não conhece o seu percurso nem as suas opiniões, Poderia simpatizar mais com o dito Estado, do que com o actual Estado, e realmente o que aquele tinha de mau que este não tenha de pior?, se não é nisto é naquilo. Espero não o tenha ofendido.
batistaj
Não ofendi coisa nenhuma…
antes pelo contrário! Tenho imenso respeito pelo Dr Leal Freire, uma grande figura da nossa terra!
Pela mesma ordem de razão também ofenderia o meu avô ao “meter os dois no mesmo saco”.
O que explica este artigo é a sabedoria particular dos mais velhos, que tem de ser vista de um prisma diferente e respeitada pelos mais jovens.
E Só!
Em tempo…
Desmentindo o resto do seu comentário, remeto-o para o artigo de opinião do Dr. Lel Freire em 28-02-2009 no jornal “Cinco Quinas” sintomáticamente intitulado “As Vitórias de Salazar”.
Sem mais…