O Viriato Tágico é uma espécie de novela de cavalaria, como a novela do rei Arthur, mas sob a forma de poema clássico. Escreveu-o Braz Garcia de Mascarenhas no contexto das guerras da restauração, que tinham alguma analogia com as guerras da conquista da Lusitânia pelos romanos.

A trama resume-se assim… Antes de partir para a Serra da Estrela (foi a partir daqui que começou o mito de Viriato seria natural da Serra da Estrela), Viriato convidou para um torneio os cavaleiros que pretendessem demonstrar o seu valor, a troco de um prémio. Acorreram cavaleiros de todo o mundo.
Além do torneio, as festas compunham-se de uma regata e uma tourada, cuja descrição, sendo a parte principal do poema, é de uma grande beleza, pela retrato dos cavalos, do colorido e do movimento, mas em que não nos detemos, porque sendo o poema autobiográfico e o seu verdadeiro herói Braz Garcia de Mascarenhas e não Viriato, a parte que nos interessa é aquela em que relata as suas qualidades e a sua longa vida aventureira, que culminou no governo da praça de Alfaiates.
Braz Garcia, era natural de Avô, na confluência do Alva com a ribeira do Moura, nas faldas da Estrela onde viveu uma infância feliz e despreocupada, antes de ingressar na universidade em Coimbra.
Da altiva Estrella nasce altivo infante
Meu pátrio Alva, como de Almathêa
(Viriato Trágico, Canto IV, Estância 90)
…
E tu filha do Alva cristalino
Minha mais natural, que culta musa,
Em cujas praias o senil menino
Me ensinou a tocar a cítara lusa
(Canto I, Estância 4)
…
Bem de onde o Alva cristalino abraça
O pomifero Moura, que correndo
Pobre de cabedal, rico da graça,
Censo estivo lhe está sempre oferecendo.
(Canto XIV, Estância 104)
Foi um homem de sangue quente e de tão fácil manejo da espada como da pena, o que o levaria a envolver-se em desordens, a refugiar-se em Madrid, a participar na guerra dos países baixos a regressar a Avô e depois emigrar, na sequência do casamento do seu amor de infância com um rival, para o Brasil onde teve participação assinalável na defesa de Recife e Olinda, contra os Holandeses…
Entro, na adolescência, ponho a espada,
E d’ella apprendo uma e outra regra,
Ramo não fica em que não vá provada,
Nem cabello, em que me não dêem com a negra.
O tanger, o dançar muito me agrada
Mais o cavalo brincador me alegra
De festa em festa ao néscio encaretado
Aqui senhor me finjo, ali criado.
(Canto XV, Estância 34)
…
E achando-me formiga entre elefantes
Por não servir, depois de ser servido,
Deychei a corte por abismo cego
Enfadado da terra ao mar me entrego
(Canto XV, Estância 49)
…
Tendo as coloneas já reconhecidas,
Na de Olinda parei, tendo a de Olinda
Por maior, por melhor e por mais linda.
(Canto XV, Estância 56)
Foi também por causa de zaragata em que se envolveu quando regressou ao reino, que a troco de amnistia participou nas guerras da restauração como guerrilheiro…
A ter estranho Rei longe, era certo
Que poderão traidores derrocar-me
Como o ter natural, tão justo e perto,
Atropeli quem quis atropelar-me
Vendo-me livre com ditoso acerto.
(Canto XV, Estância 102)
…
Com muitas velas e muito vento
Aqui e ali confusamente errando;
Pela agulha do humilde entendimento,
De Viriato os princípios penetrando
(Canto V Estância 34)
E foi na sequência do seu desempenho na guerra de restauração e anterior experiência militar, que foi nomeado governador de Alfaiates, e desbaratou numa cilada que montou no porto de S. Martinho, junto ao rio Águeda, uma grande força invasora que se retirava com um saque de mais de 20.000 cabeças de gado…
Mas já donde uma estrada outra cruzava,
De gente satisfeita e chocarreira,
Distante sentem vir tropa infinita
Que ao som de carros, baila, canta e grita.
Llogo Viriato com a prompta orelha,
Cauto, de longe nota o seu descuido,
Sua gente, desvia e aparelha
Tudo antevendo e prevenindo tudo.
Occulta gente de uma e outra banda
Por que a romana tarde a reconheça,
A qual da certa morte descuidada,
Vem a cahir no meio da cilada.
De cada lado, foi logo investida
Atraz cercada, e bem cortada avante
Pagando seu descuido com a vida
Que da morte se faz sempre distante.
…
Viriato, que vê desbaratada
A gente que a bagagem conduzia,
E quanta em sua guarda vinha armada,
Que um excessivo número fazia,
A viva perdoou, que manietada
Com toda a carruagem que trazia,
Armas, cavalos, mulas tudo encerra
Entre sua gente e marcha para a Estrela.
(Cap II Estâncias 58 a 72)
Vitória que suscitou a inveja de D. Sancho Manuel, governador militar da província e a prisão de Braz Garcia no Castelo do Sabugal onde ficou rigorosamente incomunicável. Pedindo um livro para matar o tempo, deram-lhe a flos santorum, do qual, com miolo de pão e água conseguiu recortar as letras e ridigir uma carta que enviou em segredo a D. João IV. Libertado e cumulado de algumas honras, mas cansado de intrigas, retirou-se para a sua Avô natal, onde faleceu…
Como estes Reinos teus se levantaram
Sua conservação, te não relato,
Por ser um dos que a peitos a tombaram
Tão mal m’o satisfez o vulgo ingrato
Tanto émulos inúteis mo invejararam
…
Retiro-me a estes vales e a estas fontes,
A estes frescos jardins e pátrios rios.
(Ib. Estância 101)
Braz Garcia foi, como se pôde ver, um homem de engenho e ousadia. Engenho que lhe deu uma vida aventureira e o livrou de muitos apuros sobejamente documentados no Viriato Trágico; a ousadia com que, achando-se digno dos feitos de um herói mítico, escreveu uma autobiografia elogiosa que ficou para a posteridade. As qualidades que Braz Garcia tinha e transpõe para o herói no Viriato Trágico, vemos nos dias de hoje por aí em muita gente conhecida, mas no inverso.
É o sinal dos tempos, caros amigos: Ao engenho, agora chama-se esperteza; à ousadia, lata!
Por isso Braz Garcia escreveu o Viriato Trágico e João Rendeiro escreveu Uma História de Sucesso…
Alguém se lamentava, há uns posts atrás, de já não haver Guarda Republicanos como antigamente… Quero lá saber dos Guarda Republicanos! Eu, cá queixo-me é dos homens que há agora!
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente
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