Conversámos brevemente com Manuel António Pina, o escritor e jornalista sabugalense que no dia 4 de Abril será homenageado na sua terra natal. Por força da profissão do pai, que tinha de mudar de serviço e de localidade cada seis anos, Manuel António Pina saiu do Sabugal ainda menino, precisamente aos seis anos de idade, passando a andar de terra em terra e de escola em escola. Do Sabugal foi para Castelo Branco, depois para a Sertã, Cernache de Bonjardim, Santarém, de novo Cernache do Bonjardim, Oliveira do Bairro, Aveiro e Porto, onde acabou por se fixar. Entretanto licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e dedicou-se à escrita e ao jornalismo. Nesta breve conversa falou-nos das suas memórias de um Sabugal longínquo que, contudo, guarda na memória.
Tendo saído do Sabugal aos seis anos de idade, e tendo mantido a partir daí pouco contacto com a sua terra de nascimento, que recordações ainda guarda dessa terra?
A recordação mais antiga que tenho de mim mesmo (falei dela há tempos numa entrevista a uma revista da Galiza) é uma criança de dois ou três anos, de chapéu de palha na cabeça, ao pé de uma fonte, acho que uma fonte de mergulho, circular, num largo talvez em frente de minha casa. Outra criança tira-me o chapéu da cabeça e atira-o à água. Eu – acho que sou eu essa criança – exijo-lhe que o vá buscar e mo devolva. O outro miúdo não o faz, e afasta-se rindo. Então, cheio de orgulho ferido, eu regresso a casa. Tenho medo do que minha mãe me dirá, que me castigue e me obrigue a voltar atrás para recuperar o chapéu, mas sei que não o farei. E não o farei porque não seria justo. Não fui eu quem o lançou à água, e seria uma humilhação ir buscá-lo eu. Vou preparado para tudo. Minha mãe, como previra, manda-me ir buscar o chapéu. Eu recuso e fujo para o meu quarto a chorar. Quem acaba por ir buscá-lo é a minha «ti Céu», a melhor amiga de minha mãe, a quem eu chamo de tia, e que se encontra naquele momento lá em casa com ela. Traz o chapéu de palha, e volta a pôr-mo, molhado e tudo, na cabeça. Minha mãe, à porta do quarto, observa em silêncio.
Depois tenho outras, mais recentes. A sessão organizada pela Junta de Freguesia há anos, salvo erro no Salão Nobre da Câmara, sobre os meus livros e o encontro com Maria Natália e sua mãe e a visita à casa onde nasci, além de uma breve passagem pela vila em direcção a Quadrazais, para assistir ao funeral de meu tio Juvenal Salada. Dessa viagem resultou um poema, «Ouro e prata» incluído no meu livro «Cuidados intensivos». Todas as outras memórias que tenho do Sabugal são passadas imagens confusas, misturadas com sentimentos presentes, de que falo em outros poemas: «Lugar» (de «O caminho de casa») «[Lugares da infância]» (de «Um sítio onde pousar a cabeça»), e ainda «O quarto cor-de-rosa» (sobre a casa onde nasci, que é hoje da mãe da Natália), «Branco», «Forma, só forma» e «Um casaquinho preto» (sobre o casaco, na verdade uma pequenina casaca de cerimónia, feita pela minha «ti Céu», que ainda tenho e que vesti aos dois ou três anos numa festa de Carnaval no Sabugal).
Podemos afirmar que enquanto poeta também se sentiu inspirado pelas recordações da infância no Sabugal…
A memória da infância, sonhada ou vivida (se a própria vida não é, como afirmam os budistas, um sonho), é, acho eu, um dos motores centrais da minha poesia. Em alguns dos poemas que tenho imprudentemente escrito, como os que referi, está de forma explícita e em recordações de sítios e situações concretos de que vagamente me recordo hoje e, sobretudo, na consciência mais ou menos magoada dessas recordações, que sei que são apenas isso, recordações, provavelmente, mas que sei eu?, imagens com que eu próprio fui construindo a minha memória e cuja «verdade», mais do que a dos acontecimentos distantemente invocados, é sobretudo a da própria distância e a dos sentimentos que a habitam. Há, por exemplo, outro poema «Junto à água», do meu livro «Um sítio onde pousar a cabeça» (e esse ‘sítio onde pousar a cabeça’ é justamente a infância perdida), em que julgo – nestas coisas não se pode dizer nada com certeza – falo a minha longa peregrinação por terras estranhas desde que deixei o Sabugal até hoje…
Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa
às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas; à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas…
…e por aí fora.
Aliás, o tema do regresso a casa é um dos mais persistentes leitmotivs da minha poesia, e acho – até onde me é possível sabê-lo – que isso resulta de a minha vida ter sido sempre uma eterna partida, pelos motivos de que lhe antes lhe falei.
Como vê o acto de homenagem que os sabugalenses lhe preparam?
Como um regresso a casa. E levado por mãos tão amigas como as de Paulo Leitão Batista e da Natália.
«A esta hora,
– escrevo eu noutro poema –
na infância neva
e alguém me leva pela mão.
Quem me trouxe de tão
longe senta-se agora
à minha cabeceira
pegando-me na mão.
Senhor, que ao menos
a infância permaneça,
o espírito da neve / desfolhando-se no chão!»
plb
Efectivamente, Manuel António Pina é um dos opinadores que defende os professores, ao contário de muitos outros que estão (sabe-se lá porquê) contra os professores.
«No actual estado de coisas, o cínico ditado segundo o qual”quem não sabe fazer ensina”deve, mais apropriadamente, ser substituido por”quem não sabe ensinar educa” »
(Manuel António Pina em Jornal de Noticias)