Por brincadeira costumava-se dizer que eu tinha nascido no toro de uma couve. Sei que assim não foi mas até podia ter sido. Ainda hoje existe a casa onde nasci e é com alguma nostalgia que para ela olho cada vez que por lá passo. Contudo, terão sido muitas as vezes que à sombra de uma couve fui pousado enquanto minha mãe tratava das terras.

Fui para Lisboa porque os meus pais tiveram que daqui sair em busca de melhor sustento, já lá vão 49 anos.
Quando «vínhamos à terra» o meu coração palpitava de ansiedade todo o caminho que durava muitas horas.
E à chegada esperava-nos a tal sopa de baginas ou o caldo borraçudo (espero que se escreva assim) que a minha tia tinha para nós feito com tanto carinho e saudade.
E aí, chegava o sabor da liberdade de ser menino que na cidade me era limitada entre prédios.
Saltei muros, andei aos ninhos, chinchei fruta, viajei pelo mundo nos estadulhos dos carros de bois, bebi água pura e fresca das fontes, toureei cabras e ovelhas, mergulhei no Côa tentando apanhar os peixes, inventei histórias de Mouros e Cristãos à sombra dos castelos com lutas de soldados feitos com batatas e alguns paus. Vivi naqueles parcos dias que por ano cá passávamos, a liberdade de ser menino numa terra de encantar onde todos eram tios e tias.
Cresci na cidade com os olhos postos nestas terras onde em menino senti o cheiro de liberdade e os sonhos se criavam fácil.
Ligado às tecnologias cedo me entusiasmei por o que mais tarde se viria a chamar Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), assisti ao nascimento de muitas tecnologias sem as quais hoje não seria possível viver, utilizando-as desde os seus primórdios.
Sendo um entusiasta das tecnologias da comunicação desde os anos 70 do século passado, acompanhei e aprendi muito ao longo dos anos tendo hoje um conhecimento que, sem falsa modéstia, considero razoável nestas matérias.
Sabendo das dificuldades por que a minha terra está a passar em termos de desertificação, e das dificuldades reconhecidas em termos de acesso às TIC, farto da cidade, admiti que poderia de algum modo contribuir modestamente para contrariar a tendência.
Foi inspirado pela filosofia da Free Software Fondation (FSF), pelo espírito do software open source, e pelos objectivos traçados na Cimeira de Lisboa quanto à utilização das TIC para a Europa, que decidi voltar à MINHA TERRA e contribuir com os meus recursos e saber para contrariar a tendência de morte anunciada desta maravilhosa cultura e região. Estava consciente que o meu trabalho seria sempre uma modesta contribuição, que as dificuldades iam ser muitas, e que seria mais fácil obter lucros nas cidades, mas farto da cidade estava eu.
Acreditava que NA MINHA TERRA poderia ser mais útil e ajudar a contrariar a tendência que acreditava eu ser resultado das politicas centralistas do poder de Lisboa.
Estava consciente da modéstia da minha contribuição, mas também acredito que é da modesta contribuição de cada um que se conseguem resultados.
Para cumprir os objectivos procurei apoios no IEFP e outras entidades, onde me desmotivaram em vez de ajudar.
Determinado, decidi mesmo sem apoios, levar em frente a minha ideia e fazer uso apenas dos meus recursos avançar com o projecto. Acreditava eu que aqui havia pessoas que sabiam lutar por esta terra, como o tinham feito durante milhares de anos os nossos antepassados.
Enganei-me!
Aqueles que como eu saltaram muros, chincharam fruta, mergulharam nas aguas (então) límpidas do Côa e que hoje ocupam lugares de decisão, foram os que se mostraram mais incapazes de reconhecer o valor da proposta, causaram dificuldades e chegaram mesmo a boicotar iniciativas.
E aí, finalmente percebi as lágrimas nos olhos dos meus amigos que tenho visto partir por aqui não conseguirem viver.
E aí, finalmente percebi a tristeza de muitos que vem as suas famílias destroçadas pela necessidade de alguns partirem pelo mundo em busca de sobrevivência.
E aí percebi porque razão A MINHA TERRA E A MINHA CULTURA está a morrer, porque são os da terra que perderam a vontade e coragem, que durante milénios caracterizou esta gente ARRAIANA, de lutar para a manter.
Percebi que a causa está cá dentro não no poder centralista de Lisboa, que é cá dentro que se tomam as medidas certas ou erradas e, que é cá dentro, que as soluções tem que ser encontradas e postas em prática, unindo e não promovendo a discórdia e o autismo institucional.
Não são os tão proclamados 200 euros por nascimento que vão contribuir para contrariar a desertificação, não é mais um pavilhão polidesportivo que vai manter aqui os jovens, não é impedindo as empresas de se instalar que vai haver mais trabalho para os potenciais progenitores que vamos ter mais nascimentos.
Nasci numa terra onde o pó dos caminhos se metia nas narinas a caminho do rio nas quentes tardes de Verão, onde em cada Chão havia pessoas, onde os animais pastavam nos lameiros e onde não havia polidesportivos nem calçadas nas ruas.
Hoje regressado vejo caminhos calcetados, estradas alcatroadas, polidesportivos (a mais), piscinas, mas há algo que não vejo, as pessoas, as galinhas, os burros, as vacas.
Vejo desânimo nos olhos das pessoas, enquanto outros se vangloriam em almoços autistas, das suas medidas que apenas tem promovido a morte desta minha gente, que é obrigada a partir para outras terras para continuar a ter algo com que matar a fome.
E há algo que continuo a ver como há 50 anos, as pessoas a partir com as lágrimas nos olhos.
Em 50 anos não fomos capazes de ter na nossa terra, alguém verdadeiramente empenhado em reconstruir a possibilidade dos transcudanos poderem viver e ser felizes nesta NOSSA TERRA.
Não será tempo de nós os que, por opção própria ou por acaso do destino, queremos aqui ser felizes, dizermos o que nos vai na alma sem medo das represálias que os que detem o poder nos possam causar?
Eu tenho menos receio das represálias desses que destruiram a MINHA TERRA, do que das políticas absurdas que todos os dias destroem vidas e negócios das minhas gentes. Por isso levanto conscientemente a minha voz contra o que entendo serem medidas suicidas.
Por isso trabalho 18 horas e mais por dia como muitos outros, para poder contribuir modesta e EFECTIVAMENTE para o progresso da terra que me viu nascer.
Não percebo como as pessoas que detiveram o poder desde há 50 anos se podem sentir orgulhosos das suas decisões, e ver as famílias dos seus amigos partir com lágrimas da sua terra devido às suas decisões. Assim como não percebo que hoje se continue a governar olhando para o umbigo em vez de olhar para as pessoas.
Não será tempo de mudar atitudes?
Não será tempo de as pessoas perderem o medo e lutarem pelo seu direito de ser felizes na terra que os viu nascer e que amam?
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«O Bardo», opinião de Kim Tomé
Agora percebo porque o Côa lhe rega o sangue! Porque, também, essas terras onde passei a minha primeira década da vida, e já lá vão mais cinco, continuam a ser o centro de aprendizagem mais importante que vivi. Não foi fácil colaborar nas tarefas da vida quotidiana logo que acordávamos para a vida…Mas quem estava a nosso lado amparava-nos e não nos deixava para trás. Não é a industrialização que peca por não existir, é a falta de vontades de outros em deixar aplicar as novas tecnologias por quem ama estes lugares e os quer ver vivos, férteis, Naturais…Mas limpos, ecologicamente falando, não só para o Homem, mas também para qualquer ser vivo Animal ou Planta.
Parabéns Kim pela sua luta e espero que muitos outros “Kins ” surjam por esse concelho e por todos os lugares que o Homem habita
HÀ SEMPRE UM ARRAIANO DESCONHECIDO.
Só hoje às 0.50 de Domingo ao revesitar o texto de Kim Tomé e ao ver a óptima foto que incorpora o genuíno testemunho me apercebi que é a mesma pessoa do site TUTATUX, que desde que apareceu nos Links da Capeia arraiana, visito com regularidade, assim como o de Manuel Morgado outro artista que ainda não conheço.
Bem-hajas por tudo o que tens dado ao Sabugal.
Gostei do seu texto. Louvo-o pelo facto de querer “arregaçar as mangas” e contribuir para o desenvolvimento e progresso da nossa aldeia, que infelizmente é muito parca em industria e comércio. A terra onde eu nasci, trago-a no coração e sinto-me bem em visitá-la, mas sem ofensa, não é o
local onde quero viver, falta-lhe a linha férrea para ter acesso a várias localidades do país. Adoro o contacto com a natureza (o campo), mas também me faz falta a imensidão do mar e o cheiro a maresia. Talvez porque viva numa cidade muito pacata, mas com acesso a outras cidades.
Excelente! Revejo-me em quase tudo o que escreve. Também fui um dos garotos que viveu assim a infância e aos 11 anos vim para a cidade continuar os estudos. E hoje ando por cá mas com o pensamento nessas terras, naqueles empreendimentos que se bem geridos e apoiados, não me importava de ir de malas e família e deixar esta vida desenfriada da cidade. Felicito-o por ter tido a coragem de enfrentar o boi pelos cornos e de continuar a lutar pelo bem estar da sua família e do seu “castelo”.
Boa peça.
A metáfora da couve é fantástica!
A alma arraiana é isso mesmo!
Sempre me considerei como mais um carvalho entre os outros tão nobres carvalhos que povoam (ainda) os nossos campos!
So desejo acrescentar que, é esse verdadeiramente o espírito. Deixemos de dizer a minha terra para entendermos que não é nossa, somos nós que lhe pertencemos!
Parabéns J. Tomé. Um texto clarinho como a autrora água do Côa!
Um texto verdadeiramente sentido e que foca bem os problemas da nossa raia. Para ser lido e reflectido muito bem!