Há pequenos e simples petiscos, fruto da tradição popular, que são verdadeiras iguarias. Havendo carência de substância, a mestra da cozinha empenhava-se no tempero ou em cuidados segredos de confecção, para que o petisco saísse a preceito, com sabor que disfarçasse o fraco teor alimentício.
Temos exemplo no aproveitamento da chamada carne gorda, que hoje tanto se despreza e se envia para o lixo, por se considerar susceptível de criar ou agravar doenças. Mas nos tempos da miséria, não havia lugar a essas preocupações, tanta era a necessidade de alimento. O trabalho era árduo, provocando o natural desgaste de tudo o que era emborcado com sofreguidão.
Após a matança do marrano, agarrado sobre o banco pelo matador e seus cúmplices, o animal era dependurado e limpo das vísceras, ficando então a carne a «enxugar». No dia seguinte era a desmancha, sendo esquartejado a golpes de malho e de facalhão, tendo cada pedaço de carne o seu destino. Os restos de sangue e os pulmões, ou boches, iam para a confecção das bucheiras. Os quadris e as pás destinavam-se à salgadeira para presuntos. A fêvera e alguma gordura eram para o enchimento das chouriças. Cabeça, orelhas, rabo e espinhela iam para os buchos. O toucinho, agarrado ao couro, era salgado. Tudo tinha um destino definido, porque o marrano havia de dar para todo o ano, se bem organizada era a dona da casa e obedientes à sua orientação doméstica eram o marido e os filhos.
Toda a gordura tinha aproveitamento. Pedaços de gordura da chamada moleja eram colocados numa panela de ferro junto ao lume, onde derretiam durante cerca de uma hora, havendo apenas que lhe adicionar uma pitada de sal. No fim desse tempo, os pedaços de torresmo, a nadar em gordura líquida, saiam para fora do panelo, colocando-se numa travessa e indo assim à mesa. Acompanhavam com pão centeio e vinho tinto, ou então com alguma farinhenta batata cozida. Estes eram os torresmos da matança, degustados em acto contínuo à morte do marrano, sendo muitíssimo apreciados.
Durante o restante tempo do ano, os torresmos não deixavam de fazer parte do elenco de comidas, sobretudo quando se impunha uma comida rápida e que desse sustento. Quando disso houvesse necessidade, a dona da casa esticava o braço pela arca salgadeira, onde agarrava e retirava uma peça de toucinho. Cortava três ou quatro tiras, que depois dividia em pedaços mais curtos, colocando-os dentro de uma sertã de ferro que aproximava do lume, assente na trempe, sobre o borralho vivo. Em meia hora estavam os torresminhos prontos a comer, também aqui acompanhados com pão ou batata cozida, sendo ainda regados com vinho tinto de produção caseira, ou vindo do tonel da taberna mais próxima, se já estávamos pelo Verão adentro, quando o vinho caseiro, puro e sem tratamentos, já ficara turvo ou vinagrento, por efeito das trovoadas.
Hoje, como dissemos, o torresmo quase deixou de ir à mesa, atendendo ao seu alto teor calorífero. Há uma justificada preferência por comidas limpas, com o mínimo de gordura. Porém, haverá que manter o hábito e, de quando em vez, dar preparação aos torresmos, à moda de antigamente. Sabe bem recordar os antigos sabores e verificar como os velhos de hoje sabiam tratar-se com gosto e paladar, mau grado a enorme escassez de recursos.
Paulo Leitão Batista
É um petisco dos Deuses…
É da. iguaria de que eu mais gosto, a par de pimentos curtidos.
No Soito esses torresmos era chamados “Chichorrões”