Há muito que estava prometido o encontro no Jarmelo com Agostinho da Silva. O espírito de missão que leva este homem a defender a causa da vaca jarmelista é digno de registo. Com discurso rápido e fluente o irreverente presidente da Junta de Freguesia do Jarmelo mistura a polémica sadia com algum marketing provocante. A conversa fez parar o tempo lá riba no marco geodésico onde, musicadas pelas brisas beirãs, se avistam paisagens a perder de vista desde a Guarda até Ciudad Rodrigo. «Preparo-me para ser candidato à Câmara da Guarda. Mas não vale a pena escrever isso porque quero apenas abanar um pouco o estado das coisas em relação à raça jarmelista», diz-nos com um sorriso matreiro, Agostinho da Silva enquanto nos guiava pelos terras e terreólas da sua freguesia desenhada pelos martelos dos ferreiros de outros tempos.
«Quando iam comprar as vacas, escolhiam as que dessem muito leite… paridas de pouco tempo, p’ra se ver o amoijo, se tinha bom amoijo alguma coisa havia. As vacas cá se iam seleccionando, uma vaca que desse muito leite, o proprietário depois de ver que não dava leite, engordava-a e procurava vendê-la… ia procurar outra… a este mercado aqui… ou até Pousafoles do Bispo, Vila do Touro, Alfaiates, para onde tinham ido as nossas bezerras, aquelas que mais tarde dessem bom amoijo, iam-se lá comprar, tanto assim, que uma vez veio de lá uma vaca de Pousafoles para o Ti Órfo… era uma vaca muito linda! Muito bem posta, mas não era grande; tinha o focinho amacacado assim de sapo, virado p’ra diante… mas é lindo o focinho curto.» (retirado do livro das memórias do Silva da Ima, pai do nosso entrevistado).
Agostinho da Silva nasceu a 15 de Dezembro de 1965 na Ima do Jarmelo. Depois da Escola primária entrou para a ordem religiosa missionária Verbo Divino, no Tortosendo. Frequentou a Escola António Arroio, em Lisboa, entrou na Belas Artes do Porto, onde fez o curso de Design de Comunicação. É, actualmente, presidente da Junta de Freguesia do Jarmelo (um conjunto de várias povoações), vive em Porto da Carne (e em breve na Guarda) e vai sempre que pode à aldeia que o viu nascer – Ima do Jarmelo –, uma terra onde ainda resistem cerca de 20 pessoas. Fotógrafo, designer e professor de Artes Visuais é um dos maiores activistas da campanha contra a extinção da raça jarmelista. Foi, com muito orgulho, que nos mostrou a vaca e a bezerra, dois exemplares lindíssimos, que mantém na «loja» de seus pais na Ima do Jarmelo.
Iniciámos a nossa visita guiada pelo Largo da Igreja de Cima onde se percebe na muralha a intervenção sofrida por um portal alargado. Agostinho da Silva recorda a memória dos mais antigos sobre o que aconteceu…
– As procissões antigamente saiam da igreja de cima passavam na vila e entravam na igreja de baixo e no ano seguinte era ao contrário – ainda hoje as pessoas vão à missa ao domingo, alternadamente, a São Pedro e São Miguel – e como passavam por aqui e a portaleira era um pouco estreita havia sempre uma picardias entre quem levava o andor e… empurra para lá, encontrão para cá riscando as madeiras… e o padre para acabar com isso mandou deitar abaixo um dos lados da portada.
A cada passada é possível chutar pequenos calhaus negros duros e pesados. Deixamos a explicação para o nosso anfitrião. «Isto é escória de ferro. Na reconquista de Portugal aos mouros um grande núcleo de ferreiros veio implantar-se no Jarmelo. No início do século XX tinhamos 120 forjas de ferreiro na região do Jarmelo. A vaca jarmelista é bastante parecida com a asturiana de Los Valles. E a minha teoria está associada a isto. Quando vieram os carregos com os bens dos ferreiros asturianos eles também trouxeram os carros e as vacas. Eram comunidades fechadas auto-suficientes que associadas ao microclima que aqui existe apuraram uma raça diferente de todas as outras.»
Continuámos até um espaço no interior das muralhas, nas ruínas da antiga Vila do Jarmelo. «Aqui actuou o Chuchurumel, no Dia do Património.» – E o que é o Chuchurumel? – «É um grupo constituído por César Prata e a Julieta Silva cantam cantigas populares, tradicionais. Fizeram um levantamento, sistematizaram as recolhas e concretizaram, aqui, uma apresentação com 15 temas.»
Mais à frente percebem-se as marcas do que sobra das paredes em pedra de uma casa. «Aqui viviam os pais de Pero Coelho, um dos assassinos de Inês de Castro. Quando D. Pedro subiu ao trono mandou arrasar a vila do Jarmelo que o povo vai lembrando com a lenda – não ficou pedra sobre pedra e que salgou as terras para que elas nunca mais produzissem – mas a verdade é que as terras são pobres. Perto da ribeira faz-se algum cultivo mas afastando-nos 50 metros é só centeio e mato.»
A intervenção que houve no Castro foi coordenada pela Câmara da Guarda, com um arqueólogo e com uma equipa de quatro pessoas que estiveram aqui a trabalhar cerca de um ano. «Notamos é a falta de datação de objectos. Chegámos a pensar num campo de férias com características especiais, por exemplo, vocacionado para a história mas ainda nada se concretizou», esclarece Agostinho da Silva.
O carreiro bem trilhado levou-nos a um dos sítios mais emblemáticos das terras do Jarmelo. A pedra de montar. Mais uma vez deixamos a explicação para o nosso guia. «Esta é a famosa pedra de montar mas parece que não estava aqui. Foi aqui colocada há cerca de 60 ou 70 anos. Tem talhada uma ferradura e uma poça para colocar a ração e está associada à lenda de que Inês de Castro montava neste pedra para o cavalo.»
A visita ao Jarmelo tem um ponto de passagem obrigatório. O marco geodésico. Substituiu uma antiga torre de menagem e permite desfrutar de uma paisagem a perder de vista desde a Guarda até às planícies espanholas de Ciudad Rodrigo.
«Todas as aldeias do Jarmelo tinham o chamado caminho da missa – por momentos era carreiro, outras era caminho, outras era atalho – e a cerca de 100 metros da igreja estava uma lasca, uma pedra espalmada, onde as mulheres metiam por baixo as alpargatas espanholas (com sola de borracha e pano preto) e calçavam os sapatos. No regresso voltavam a calçar as alpargatas. Naquele tempo havia uns sapatos para ir para à missa e uns sapatos para o trabalho do campo. Eu que não sou assim tão velho tive as primeiras sapatilhas aos 10 anos quando fui para o Seminário para o primeiro ano do ciclo. Mas não fomos tão massacrados nem traumatizados como são os miúdos de hoje em dia», recorda o autarca do Jarmelo.
A paragem seguinte foi na Fonte de Santa Maria, onde apesar de Setembro já ter terminado, ainda pingava. A guardá-la, um imponente castanheiro com mais de cinco séculos, olha-nos com desinteresse. Junto ao largo da feira um curioso redondel talhado na encosta…
– Há uns anos largos – nos tempos em que havia dinheiro para apoiar a feira por parte do Ministério da Agricultura – e sendo secretário de Estado, o doutor Álvaro Amaro e sendo presidente da Câmara da Guarda, o senhor Abílio Curto, concederam-nos um fundo para a construção do redondel. Ainda está inacabada mas tem imenso potencial. Eu e o arquitecto Isidro, que está com a dinâmica cultural da Associação Cultural e Desportiva do Jarmelo, organizámos aqui uma iniciativa com piada. Esticámos uma tela e projectámos uns vídeos para a população.
– Este conjunto em ferro que nos liga à morte de Inês de Castro está com um aspecto muito interessante…
– O conjunto escultórico surgiu um pouco em tom de contra-corrente como muitas das coisas que costumamos fazer. Foi uma iniciativa do arquitecto Isidro e o autor foi o filho do ferreiro das tesouras de tosquia. A partir da imagem de Bordalo Pinheiro fez-se esta encenação à escala um e meio que representa o assassinato de Inês de Castro. Lançamos esta iniciativa nos 651 anos da sua morte. Como o Jarmelo não contou para as verbas as comemorações oficiais nós, em tom de pirraça, resolvemos comemorar no ano seguinte.
As aldeias de Ulgueiar e de Donfins do Jarmelo – onde vive o Ti Mateus Miragaia (o último ferreiro fazedor de tesouras de tosquia do país e com quem iremos publicar muito em breve um «à fala com…») – conservam ainda a traça bastante próxima do que eram as casas de outro tempo. O chafariz tem duas bicas. – «Quando andávamos na escola costumavam dizer que uma era para as pessoas e a outra para os animais e os ciganos. Coisas de miúdos.» – A Ulgueira tem muitos vestígios judaicos e uma característica muito especial. É a aldeia das meninas. Aquelas que não se casavam, e foram muitas, ficavam menina Zézinha, menina Aninhas ou menina Mariazinha para a toda a vida.
– «A escola era aqui na Urgueira para os das terras de Donfins, Ima, Devesa e Alto de Valdeiras e da Ulgueira. A caminho da escola tínhamos o jogo das nascentes onde os mais velhos ganhavam sempre. Escolhíamos uma nascente no caminho e todos os dias tentávamos afundá-la para que não deixasse de deitar água.»
Ainda houve tempo ao final da tarde para conhecer Joaquim Monteiro da Silva e mulher, pais de Agostinho que, curvados ao peso da idade, andavam a tratar dos campos de milho e com quem, depois de saber que eramos do Sabugal, recordou com emoção as suas viagens até aos mercados das vacas em terras raianas.
E, claro, tudo terminou com uma visita aos dois exemplares jarmelistas (uma vaca e uma bezerra) que Agostinho da Silva, orgulhosamente guarda na «loja» de seus pais na Ima do Jarmelo.
Provocador lançou a última aguilhada: «Vou concorrer a presidente da Câmara Municipal da Guarda. Mas não vale a pena escrever isso. Não tenciono ir até ao fim. É só para ter tempo de antena para a vaca Jarmelista.»
Mas… lá acabou por concordar com a divulgação da novidade.
jcl
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