O meu plano é trazer aqui um resumo dos 38 meses e 11 dias da minha tropa: desde 21 de Julho de 1971 (entrada no Curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria de Mafra) até 2 de Outubro de 1974 (aterragem no aeroporto militar de Lisboa, vindos de Luanda). Trarei apenas episódios marcantes, nunca esquecidos, que dormem acordados nos recantos da minha memória.
Notas de abertura
1 – Esta série de crónicas vai terminar na próxima semana.
2 – Resolvidas as questões técnicas que me impediram de estar presente durante três semanas, aqui me têm.
3 – Escrevo esta crónica, de propósito no dia 25 de Abril, hoje que comemoramos os 45 anos da Revolução. É a minha e a melhor forma de celebrar Abril. Abril, sempre!
4 – Vou contar Abril e uma contradição de comando que nos ia matando a todos lá, no alto do quartel do Bata Sano, a quatro quilómetros de Buco Zau, no alto daquele monte bem gravado nas nossas memórias até sempre…
O meu dia 25 de Abril de 74
Na nossa zona, no centro de Cabinda, passámos sem qualquer emoção o dia 25 de Abril de 1974. Por uma razão simples: não soubemos logo dos movimentos de tropas em Lisboa. Como se sabe, em 16 de Março, tinha havido uma primeira tentativa de derrubar o governo de Marcelo Caetano e o regime violento e sectário de extrema-direita que ele simbolizava. Nesse dia, estava eu de férias em Portugal. Mas nada de novo aconteceu ao fim e ao cabo. Regressado a Cabinda, sabia-se que mais dia, menos dia poderia haver nova carga militar.
E assim foi.
Mas só o soubemos quando já em Portugal tudo estava a festejar: no dia 26 de manhã a Rádio do MPLA, que ouvíamos clandestinamente, fazia a festa toda em grande e à maneira.
Aí começámos a receber as comunicações militares a fazer o ponto da situação e a informar sobre o que se tinha passado em Lisboa.
Claro que foi a grande festa. Para nós e para os guerrilheiros do MPLA, que de imediato convidámos para um jantar de paz.
Assim se fez, mas nem tudo foram rosas.
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«Defesa próxima»: íamos morrendo
É que alguns dias depois, quando já tudo estava calmo e na grande festa revolucionária da Democracia em Lisboa, eis que se recebe no Bata Sano uma ordem do Comando de Sector, vinda directamente de Luanda para Cabinda, mandando a tropa proceder a partir daí a operações de defesa próxima.
Ou seja: tínhamos de passar a fazer não as operações de longo curso, mas operações de busca e defesa até 10 quilómetros dos quartéis.
Ora isso, em Cabinda, que tem apenas 20 quilómetros de largura, significava não haver paz nem ter acabado a guerra, já que as operações de defesa próxima cobriam todo o território.
E isso foi o fim da macacada: podíamos ter lá morrido todos – já conto qual foi de seguida a reacção do comando local do MPLA.
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A tropa não se entendia
Quanto a esta ordem de manter a defesa próxima em relação aos aquartelamentos, a tropa não se entendia mesmo. Uns achavam muito bem, não fosse o diabo tecê-las.
Outros achavam péssimo pois isso poderia parecer a anulação das ordens de Lisboa. Lisboa não se impôs e nós é que as pagámos, lá a 9.000 quilómetros, no meio da mata – a Floresta Virgem do Maiombe.
Com outra agravante: de repente aconteceu sem que ninguém por tal esperasse nem se tivesse previsto: o MPLA correspondeu com a sua estratégia de ataque a partir dos 10 km do comando / Bata Sano.
E foi assim que, coisa nunca antes vista, pela primeira vez na comissão, fomos atacados com granadas de morteiro de longo alcance.
Estava-se em fins de Junho. Era a hora de almoço. E de repente, de lá do meio da floresta, começam a chover mísseis que escaqueiram tudo quando explodem em redor do aquartelamento.
Um ataque como nunca, em 19 meses de permanência na zona. Nada menos do que 18 «morteiradas» dentro da rede do quartel do Bata Sano.
O milagre foi não ter havido mortes nem feridos. Tudo por causa de uma ordem errada e que nunca deva ter sido obedecida, claro.
Ficou-nos a todos essa lição: gente do passado a comandar tropa em revolução é no que dá sempre.
(Continua.)
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