Em tempos idos, nestes dias gélidos de inverno, a acalmia das aldeias era entrecortada pelo guinchar dos porcos em estertor, sucumbindo à faca sangradeira. O ritual da matança visava angariar alimento para longos meses, mas naquele dia a lambarice sobrevinha perante os petiscos que o momento proporcionava.
Não era qualquer um que fazia de matachim. Mestre magarefe tinha que dominar a técnica de enfiar o cochilho nas golas do gorrino para botar farta sangria. No geral, era homem sereno e pleno de si, que no tempo glaciar andava pelos currais com o facalhão entalado no sovaco e envolto num pedaço de saca de ração e com o bico cravejado numa rodela de cortiça.
Além do matador, ao pátio do vizinho que matava desaguavam meia dúzia de homens, aptos a segurar o cochino, chamuscá-lo, lavá-lo e dependurá-lo no chambaril.
A dona da casa esmerava-se, dispondo a mesa para o mata-bicho: pão trigo, azeitonas, queijo, bolos de bacalhau, figos secos, quando não, filhós e sopas de parida. Também não faltava o que restava do animal sacrificado há um ano – presunto, torresmos e chouriças conservadas no azeite. Para beber, pontuava uma garrafa de aguardente, outra de jeropiga e um garrafão de vinho tinto.
Molhada a goela e reconfortado o estômago com esses primeiros acepipes, os matadores encaminhavam-se para o curral, onde cruamente e em grande algazarra sacrificavam o animal.
Já com o gorrino lavado e dependurado no chambaril, o matachim, fazendo agora de alimpador, abria e esbandulhava, e também cortava carnes a eito, que de imediato iam a confeccionar.
Para a canalha estava reservada a passarinha (ou passarilha), que era o pâncreas do animal. Em três tempos estava sobre a grelha, sob o olhar guloso dos catraios, que tinham ali o seu ansiado pitéu.
Um trancão de soventre era enfiado na panela de ferro e um conjunto de febras eram estendidas na grelha, sobre o braseiro. Na sertã, em azeite fervente, frigiam-se pedados do fígado – as muito apreciadas iscas, temperadas com sal, alho e louro.
Porém, o mais inaudito petisco, que nem todos apreciavam, era o embigalho (ou tempereiro). Trata-se da carne que rodeia o aparelho urinário do porco. Era cortado ainda sobre o banco de matar, antes do porco ir para o chambaril. Via de regra, o dono da casa atirava-o aos cães, fazendo uma careta de asco. Mas não era raro haver convivas que o reclamavam, afirmando tratar-se da melhor gulodice da matança. Abriam-no com uma navalha de bom fio, para lhe remover a uretra, passavam-no por água e temperavam-no com sal grosso. Indo à grelha, sobre um borralho vivo, era depois traçado em pequenos pedaços, dispostos numa almofia, que se levava aos comensais reunidos na adega, à roda do pipo ou da cuba.
Entre os homens, enquanto degustavam os primeiros acepipes, contavam-se façanhas e anedotas, falava-se dos afazeres, comentava-se o viver alheio e bebia-se de rijo. Por vezes puxava-se do baralho e jogava-se em grande alarido, até que alguém berrasse a dar conta que chegara a hora de ir à mesa.
Já a cambalear e falando alto, os convivas dirigiam-se ao almoço, que naquele tempo era chamado jantar (o almoço era a refeição da manhã). À mesa alambazam-se com farta sopa de couves, com o soventre cozido na panela de ferro e as iscas de fígado, acompanhando com pão e batatas.
Não tardaria que as mulheres, vindas da ribeira, onde lavaram as tripas do porco, iniciassem a confecção do primeiro enchido da matança: as morcelas. Preparadas à base de sangue e miolo de pão e temperadas com sal e cominhos, nesse mesmo dia os varais com as morcelas seriam dispostos no fumeiro.
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«Contraponto», de Paulo Leitão Batista
Ps: É importante recriar periodicamente esta tradição da matança antiga. Uma tarde deste tempo inverniço chega para tudo, numa organização cuidada, recorrendo às diversas associações que existem nas nossas aldeias.
Uma trata de recriar a matança propriamente dita. Outra faz a desmancha de um porco com a carne já fria e assente e corta as carnes para as chouriças e os buchos. Uma terceira associação, utilizando uma marinada de carnes já temperada, demonstra como se faz o enchimento e como se dispõe o enchido no fumeiro.
Em complemento, confeccionam-se e dispõem-se os bons sabores da matança.
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