Os documentos consultados permitem afirmar com segurança que a Roda dos Expostos de Sortelha foi fundada antes de 1818. Em 1855, com a extinção do antigo concelho, passou a integrar a do Sabugal. Apesar dos constrangimentos, provocados pela inexistência de alguns livros e incoerência de algumas passagens dos existentes, calculei em 491 as crianças matriculadas nesse período, tendo por base as matrículas dos expostos. Este número deve ser considerado uma estimativa, nunca um valor absoluto. Em 1864 a população residente nesses territórios era de 6256 pessoas, segundo os censos do Instituto Nacional de Estatística. Assim, é provável que muitos de nós tenhamos um antepassado exposto ou enjeitado! Então porquê o silêncio? Nas próximas semanas dar-vos-ei conta do que encontrei.
Expostos ou enjeitados: crianças abandonadas em locais públicos, à porta das igrejas e mais tarde na Roda.
«Os expostos não eram anónimos, ou desprovidos de reconhecimento por aqueles com quem convivia. É gente que cresce, casa, usa e toma apelidos de diversa origem: da família que o criou, dum padrinho ou duma madrinha, duma profissão que entretanto aprende…»(1)
«O abandono de recém-nascidos e de crianças de tenra idade é um flagelo transversal a todas as sociedades e em todos os períodos da história. Umas vezes melhor aceites socialmente, outras mais ostracizados, esses abandonos foram sendo regulados pelo Direito de acordo com a moral e a organização social de cada época e de cada Estado.»(2) É uma prática que acompanhou a humanidade ao longo do seu processo evolutivo, desde a pré-história até à actualidade.
Na cultura Judaico-Cristã o caso mais famoso é o de Moisés, o abandono deveu-se a uma perseguição dos egípcios descrito no Antigo Testamento, Livro do Êxodo 1.22. Então o Faraó ordenou a todo o seu povo: «Lançareis ao rio Nilo todo o menino que nasceu e deixareis viver todas as meninas», em 2:3. a 2:10.
Trata-se de um filho de um casal da tribo Levi, a mãe escondeu-o durante três meses, «quando não pôde mais escondê-lo, pegou num cesto de junco, vedou-o com papiro e pez, colocou nele a criança e depositou-a entre os juncos da margem do rio».
Na Antiguidade Clássica, também a mitologia recorreu à analogia dos deuses abandonados para retratar a realidade da organização social dos povos. Édipo(3) será o mais famoso da cultura grega; Rómulo e Remo os mais famosos da mitologia romana.
Na sociedade medieval portuguesa não faltavam motivos para o abandono de crianças. Filhos gerados por relações ilícitas de membros do clero e da nobreza, relações esporádicas ou violações, relações adulteras e relações incestuosas, tinham frequentemente como destino o abandono. Algumas eram mais tarde resgatadas e legitimadas, a esmagadora maioria viverá para sempre com esse estigma social.
Durante o Antigo Regime(4) «a miséria desempenhou, durante muito tempo, um papel primordial no abandono de crianças, parecendo existir uma correlação entre o número de admissões ‘à la Coche’, e as grandes crises de subsistência.»(5)
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(1). Wikipédia (2016). Roda dos Expostos. [Em linha]. [Acedido em 18 fevereiro 2018]. Disponível aqui.
(2). REIS, Maria José Porém. «Margens sociais», in Cidade Solidária: Revista da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Ano XV, n.º 27 e 28, Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2012, pp. 152-163. [Em linha]. [Acedido em 9 março 2016]. Disponível aqui.
(3). Sófocles, Édipo Rei (tragédia grega).
(4). Antigo Regime: Período da História situado entre os séculos XVI e XVIII. Caracterizou-se pela existência de uma sociedade estratificada e hierarquizada, dividida em três ordens: clero e nobreza (que representavam as ordens privilegiadas) e o povo (destacando-se a burguesia, que adquiriu importância crescente a nível económico, político e cultural). Politicamente verificou-se a afirmação do absolutismo régio. A nível económico o mercantilismo e uma agricultura de subsistência utilizando técnicas medievais. Na cultura ficou marcado pela arte barroca e uma revolução científica.
(5). François Lebrun, A Vida Conjugal no Antigo Regime, Lisboa, Edições Rolim, 1983, p. 148.
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«Memórias de Sortelha», opinião de António Gonçalves
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2019)
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Caro amigo J. C. Mendes!
Pode tratar-me por conterrâneo!
Afinal estamos todos entrelaçados desde tempos …
Isto tudo foi feito por amor à camisola!
Assim,a qualidade do produto final diminui!
É o que se arranja!
Um abraço!
António Gonçalves
Uma achega que resulta apenas das conversas com os mais velhos quando tinha os meus 12 ou 14 anos (estaremos pois a meados do sécul XX, um pouco mais… uma realidade social, apesar de tudo, muito diferente da do século XIX aqui referida e documentada de modo magistral pelo autor).
Eis pois o que me contavam dos «enjeitadinhos» – correspondendo aos antigos «expostos»:
– Em casos de adultério e de mães solteiras, por vergonha e para esconder o facto, os filhos seriam então «enjeitados», ou seja: as mães iam pela calada da noite deixá-los em determinada porta de um convento de freiras;
– Faziam barulho na porta;
– As irmãzinhas (freiras) tinham depois um mecanismo de recolha da criança e do seu encaminhamento para famílias de adopção ou para instituições de inserção e ou acompanhamento.
Isto vale o que vale, mas lembro-me perfeitamente da referência não a «expostos», mas a «enjeitados», na voz do Povo de há 60 anos, aproximadamente…
Agradeço ao autor mais uma vez estes estímulos intelectuais: uma subida de qualidade do «Capeia», que só nos engrandece.
Nunca desista, meu caro quase conterrâneo, António Gonçalves.