Este ano, fez vinte anos que José Saramago venceu o Prémio Nobel da Literatura, pela publicação da obra «Ensaio sobre a Cegueira». Como pessoa sem dúvida que Saramago não deixou saudades a muita gente, mas o facto é que ficou na história da literatura mundial. Obviamente que teve ajudas, como por exemplo Mozart, em que a sua viúva foi fundamental para que a sua obra ultrapassasse a barreira da fronteira portuguesa, e entrasse num mercado de 600 milhões de pessoas, onde ainda muita gente felizmente lê. Embora não tivesse lido a obra, vi o filme, e, mesmo sendo uma produção de Hollywood, deixa-nos a pensar.
Para os apreciadores de livros, muitos questionam porque motivo o Nobel da Literatura terá sido atribuído a José Saramago, quando há escritores como Lobo Antunes, Mia Couto, Jorge Amado, Agustina Bessa Luis e tantos outros, que, seguramente, têm uma obra mais a gosto do leitor.
Obviamente que Saramago não era apenas escritor. E a sua obra é vasta, muito mesmo: 19 romances, quatro crónicas, cinco argumentos para peças teatrais, três contos, três livros de poemas, um livro de viagens, dois livros infantis e três livros de memórias. Mas para o público são poucas as que ficaram na memória, sendo que há uma unanimidade que o «Memorial do Convento» talvez seja a sua obra mais marcante.
Não pretendo entrar nas questiúnculas políticas porque nos dias de hoje o país está «pacificado». Mas os tempos do PREC, Saramago fez alguns estragos mostrando ser um estratega, afastando do seu caminho quem poderia prejudicar aquilo pelo que sempre lutou, tendo conseguido a «chave» da Editorial Caminho, importante meio de divulgação literária após a revolução e até meados dos anos 80.
Sendo um homem marcadamente da chamada esquerda, não se lhe conhece nenhuma condenação política, ou detenção, no período do Estado Novo, contrastando com muitos dos seus camaradas.
Mas estamos para celebrar e, tal como todos nós, a nossa personalidade nunca agrada a «gregos e a troianos».
Pela tertúlia que assisti, no passado dia 23 de novembro, no clube de leitura da Biblioteca Municipal Eugénio de Andrade, no Fundão, sobre o «Ensaio sobre a Cegueira» fiquei convencido que o filme que vi não se distancia muito do livro.
E a primeira parte da crónica mostra um lado obsessivo do escritor denotando mesmo uma «cegueira» que o leva a alcançar os seus objetivos, diga-se com sucesso, levando-me a pensar que a palavra se reflete na sua personalidade.
Mas a obra tem um lado que nos leva a pensar, mesmo nos dias de hoje, tornando-a intemporal. Porém tem uma outra faceta «comercial» sustentando a produção de Hollywood: a desgraça planetária, com a sociedade em colapso, os «bons», os «maus» e os heróis, lembrando um filme de ficção científica do género do terramoto, vulcão ou até o exterminador implacável.
Deixemos essa parte e vejamos o que nos «cega». Para além do ditado popular «em terra de cegos quem tem olho é rei», sem dúvida que numa sociedade em que a «cegueira» nos afeta, por exemplo através da televisão, do dia a dia em compasso, onde o pensamento vai progressivamente desaparecendo, o lazer, a desgraça alheia que não nos toca, a discussão do penalti, nos vai progressivamente alheando, ou cegando, dos verdadeiros problemas que nos afetam. E esta «cegueira» já existia nos tempos da ditadura, com os «3 F’s»: Fátima, Futebol e Fado.
Só que hoje, a força da imagem arrumou definitivamente com o pensamento, com uma informação muitas vezes sem estar validada, com o jogo da contradição provocando logo apoiantes de um ou outro lado, no branco que vira preto e no dia seguinte já é amarelo, para não falar nos programas em que o pensamento desaparece totalmente do nosso corpo. E sem nos apercebermos, o «ensaio», acaba por ser uma realidade que nos leva à «cegueira».
Este filme sem dúvida que me marcou e entendi que é o sentido mais importante que temos porque nos permite o saber em tempo real. Por isso elogio a capacidade de Saramago porque nos transporta a uma realidade que talvez não seja tão distante da atual.
Quem tem poder de «ver» o que o comum dos mortais não «vê», numa sociedade de informação onde «tudo» pode ser exposto, mesmo aspetos da nossa privacidade, revela que a «cegueira» não é mais do que uma luta pelo poder da informação, mostrando no filme que a desgraça e miséria humana desce a um nível nunca visto numa obra escrita por um português.
Curiosamente, e talvez como mensagem de esperança, a única pessoa que vê mostra sensatez e moraliza a estória.
A questão é se um dia quem tem o poder de «ver» o que não vemos, nos torna mais «cegos» ou antes pelo contrário, nos «abre» os olhos!
Covilhã, 1 de Dezembro de 2018
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Texto muito pouco rigoroso. Tendencioso. Para já. O Prémio Nobel não é um prémio a uma obra, mas à obra de um escritor. É o caso. Falar da obra a partir de um filme, é errado. O livro vale por si mesmo ; o filme, de igual modo. Seria aconselhável ler a obra e pronunciar-se depois sobre ela. Julgar um escritor, como indivíduo, pode fazê-lo. Tem a sua liberdade. Colocar no mesmo saco a obra toda e o seu criador, enquanto indivíduo, é errado. Deste modo, não se informa, mas deforma.
Em primeiro lugar obrigado pelas palavras e interesse pelo artigo. Vivemos em liberdade e é bom sentir as opiniões dos leitores. No entanto gostaria de esclarecer que no Cube de leitura que faço parte, onde estão escritores e professores de português, todos foram unânimes que o Ensaio sobre a Cegueira foi a obra que levou o Nobel ao Saramago. Houve igualmente unanimidade de que o Memorial do Convento é a sua obra de referência. Aceito a sua opinião de que deveria ler a obra. Mas o texto é claro: na tertúlia que participei o filme não adúltera a obra. E haviam participantes que fizeram ambas as coisas. Concordo que posso fazer um juízo de valor sobre a personalidade do escritor. Mas não lhe tirei o mérito do seu grande objetivo. Na arte não se agrada a gregos e troianos, e, julgo, mesmo não me agradando particularmente, será sempre para memória futura um dos grandes vultos da nossa cultura porque conseguiu o tão afamado prémio. Tal como está escrito. Bem haja!
Esta troca de ideias é sadia. Para mim, o livro “Todos os nomes” e até ” O Memorial do Convento” são romances mais conseguidos. Afirmo isto, como leitor, e ainda como Professor que fui de Literatura. Repito a ideia, por mim expressa, que um filme é outra obra, que vale por si mesmo, e que deve ser interpretada, tendo em contas a sua própria gramática. Mas como dizem os clássicos “ex discordia nascuntur omnia”. Um abraço.