A minha intenção é sempre a mesma. Avivar a memória da cultura de Quadrazais para que não se perca, sobretudo entre os jovens que não nasceram ou não cresceram em Quadrazais, tendo ouvido apenas dos pais e avós algumas histórias e cenas da vida quotidiana da terra onde haviam nascido, tão longe do local onde agora se encontram. Na «Novela na Raia» vou utilizar personagens reais da aldeia, tentarei descrever quadros da aldeia e narrar os factos do dia-a-dia, embora não obrigatoriamente protagonizados por estas personagens. (Episódio 10).
PRIMEIRA PARTE – FREQUENTANDO A ESCOLA
Episódio 10
Ungué! Ungué! Ungué!
Foi ao som deste berreiro ali bem perto que acordou naquela manhã fria de Janeiro. Lembrou-se do ditado: «Pelo Sant’André agarra o marraninho p’o pé.»
Pobre Sant’André! Todos os santos nos seus altares rodeados por flores e velas e ele lá fora no seu nicho, com a sua cruz, branco da geada e da neve.
– Por que será que ficou lá fora?
Nem no dia de Páscoa, em que cada um se passeava no seu andor pelas ruas da aldeia, dando volta ao povo aos ombros dos rapazes escolhidos pelos mordomos, o pobre Sant’André era apeado e seguia com os outros. Não. Nunca dali o tiraram.
– Que mal teria ele feito ao povo?
Até o caganito do Menino Jesus tinha um andor. Ele, bem mais crescido, já homem feito, nada! Até entre os santos havia diferenças! Todos os santos tinham o seu dia de festa. Ele não. Dele só se lembravam porque precisavam de matar o marrano.
Seria por estar ligado aos «marranos» judeus que o não deixavam entrar na igreja?
Não. Nesse dia não iria a Valverde. Era dia de escola. Mas estava combinado que teria de ir buscar o azeite e a tripa para a ti Creusa fazer o enchido. E a serra cheia de neve… uma toalha de linho sobre a mesa, onde tardavam os petiscos para os passarinhos, os gados e até mesmo os lobos. Dele já nem falava. Ninguém lhe dava nada, nem a mãe Natureza, para ele tão madrasta. Tinha de ser tudo ao poder de calcorrear num vai e vem o caminho de Valverde.
Os pildricos chegavam dos telhados quase até ó chão!
Ali ao lado, vizinho do ti Zé Borrega, nem convidado fora para a matança. Caramba! Já podia bem segurar uma pata do marrano. Que pensava ele?! E a desunhar ou a esfregar o lombo do bicho com a melhor pedra de areia, não tinha medo do mais pintado! Tampoco a chamuscá-lo com as almieiras de palha. Lá erguê-lo até ao chambaril… Aí tinha que amochar. Dessem-lhe mais um ano e veriam. Que não viessem convidá-lo para impedir que a passarinha fugisse. Já não era criança e já não acreditava nisso. Afinal, não era ele que tinha de sustentar a mãe e o resto da família?
O raio da escola!… Com o professor Evaristo é que não havia emberródias. Era levar e calar.
Lambeu os beiços à ideia do caldo de grabanços e das batatas com o fígado do bicho e a febrinha na brasa com um copito a acompanhar como os homes. Era mesmo de fazer crescer áugua na boca. Sim, que julgam? Já bebia o seu copito na taberna quando alguém o convidava.
Contentou-se com um copo de áugua bem fria para lhe acalmar todos aqueles apetites gulosos e com a ideia de que uns tempos mais tarde também haveriam de fazer a sua matança. Estavam a aguardar que o marraninho ganhasse mais uma arroba. Estava apenas nas cinco e, com menos de seis, seria uma vergonha matá-lo.
Que diriam as pessoas?
– Olha! Não têm que lhe dar de comer! Ó já no têm que comer em casa!
No intervalo entre a matança e o almoço viu os rapazes jogarem à barra e ao pulso com grandes pedregulhos a ver quem os atirava mais longe. Teve ganas de participar, para mostrar como era já home. Mas, se não o haviam convidado…
A miudagem entretinha-se a jogar à choina na versão da raia, da bilharda e do mocho. Um deles já ia por baixo d’alpata. Em breve terminaria o jogo.
Pegou na saca com o quadro, o reles pedrisco e o livro e lá foi cantarolando e escorregando na neve até São Sebastião. Nem se lembrou de usar os samancos que guardara do ano anterior. Não podia perder tempo. Já o professor ia a entrar, acompanhado do Júlio e do Amaro, que lhe levavam a braseira quentinha. Ó diabo! Lá se tinha esquecido da sua braseira, um tacho velho, cheio de buracos, onde punha uns galhos a arder. Como iria aquecer-se? Lá tinha de pedir a uns e outros que lhe deixassem aquecer as mãos para pegar no pedrisco. Que haveriam de dizer? Que já nem tinha uma tijela velha de porcelana, cheia de buracos.
– Que diabo! Até nas quelhes se encontrava uma! Seria por não ter lenha? Mas, para que diabo queria o corpo? – diriam. Por que não ia arranjá-la na serra mais um braçado de carqueja?
– Deixá-los pensar o que queiram.
O que lhe interessava era a verdade. Esquecera-se e pronto.
Também não havia nenhum alho para untar as mãos. Isso era com o Tó da Bela, que partia as réguas todas ao professor, tantas reguadas levava. Se era do alho ou dos cabelos nas mãos, no sabiê. Ma que já havia partido três réguas, lá disso podia ele gabar-se.
Ai dele! se levasse tantas como o Tó da Bela! Ficava sem mãos!
Entrou com o coração sobressaltado. Só agora se lembrara da cópia, que não fizera. Eram duas reguadas garantidas.
Entraria?… Faltaria?… Morra o home, fique fama!
Entrou decidido a partir, ele também, uma régua. Nem o professor deu conta de ele ter entrado na sala. Sentou-se depressa e começou a fazer a cópia. Mas já ouvira a voz:
– Antero, mostra lá a tua cópia.
Coitado do Téi Bobas! Todo se contorcia. Jogara toda a tarde à bola e da cópia nem lembrança.
– Balecho, traz cá a tua.
O Balecho começara logo a choramingar. Sô Pursor, minha mãe mandou-me à erva p’ó burro.
– Deixa-te de lamúrias! Estica-me bem essas mãos.
– Ai, Jasus, que me matam!
Sempre a mesma fita.
Sorrateiro, escapava-se porta fora o Rui da Anésia.
– Onde é que tu vais?
– Vou buscar pão p’a mim e p’a mê irmão -respondia o Cabeça Longa, sem parar.
Até hoje, não mais trouxe o pão.
Agora era a vez do calmeirão do Zé Pardido.
– Essa cópia!
– Sô Pursor!
– Deixa-te de lérias, que já te conheço.
E elas a estalar dum lado e dotro.
– Tó da Bela, a tua.
Suspense. Olhou as mãos bem untadinhas de alho. Ia partir a régua.
Uma, duas, três e zás! Lá se foi a régua. Um ãh! de alívio soou em uníssono naquela sala.
– Miguel, a tua!
– Sô Pursor, fui a Valverde, só fiz metade.
– Anda cá.
Qual cordeiro submisso, lá se apresentou o Miguel. Se já não havia régua…
Zás! Que grande lambada! Ficou-lhe o ouvido a zunir. A orelha começou a aquecer, parecia uma brasa. Nem sabia de que terra era.
– Bom! Vamos à tabuada! – gritou o professor. O Réri e o Pepe comecem a perguntar. Está aqui outra régua. O que falhar leva do outro.
– 3 vezes 7? – pergunta o Pepe.
O Réri coça a cabeça. Lembra-se de 3 cabras, depois de 7 mas, esses grupos de 7 três vezes não atina com eles. Tanta cabra o pai não tinha.
– Pepe, chega-lhe.
Deu-lhe uma devagar.
– Que é isso? Dá cá a tua mão.
E levou o Pepe.
– Vá! Agora dá-lhe.
Chegou-lhe com toda a força. O Réri olhou-o com indignação. Já se sabia. Lá fora ajustariam contas.
Saíram para o recreio. Corriam uns atrás da bola, rodavam outros as braseiras, a que metiam uns galhos, fazendo labaredas. Já o Réri havia dado dois sopapos ao Pepe. A resposta não se fez tardar. Sopapo cá, sopapo lá, outros a acudir mas a pegarem-se. Voou a primeira pedra, outra na direcção contrária e outra e outra. Aquela parede do Jé Badaneco ia indo abaixo. Quando mandaram entrar, o Pepe não voltou. Fora curar a brecha num lago de sangue. As contas ficavam para ajustar a caminho de Valverde.
Notas:
– Almieiras – archotes.
– Amochar – curvar-se, perder a contenda.
– Emberródias – hemorróides. Emprega-se no sentido de porquês ou desculpas.
– Grabanços – grão de bico.
– Mê – meu.
– Passarinha – pâncreas do porco.
– Pildricos – fios de chuva que congelavam no caminho entre as telhas e o chão.
– Porcelana – de esmalte.
– Samancos – andas.
– Ungué – onomatopeia, imitando o grito do porco quando está a ser morto.
(Continua.)
:: ::
«Narrada no Risco», por Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
:: ::
Leave a Reply