Sempre tive um secreto prazer por tudo o que é automóvel. Por isso já possuí vários das mais variadas marcas. Comprava a prestações a pagar em 12 ou 18 meses e no penúltimo mês do pagamento já andava meio louco pelos stands da cidade de Beja à procura de um outro para trocar por aquele tinha. Era assim que toda a malta fazia…
Tinha então nessa altura um Fiat 127-900C que andava um pouco mais que um boi enraivecido…
Passei pelo Stand do Senhor Domingos da Auto Salúquia (infelizmente já partiu deste Mundo) e diz-me, mal eu tinha entrado:
– Tenho ali um carro bom para si! O ideal para a sua categoria. E decida depressa porque já anda aí muita gente à volta dele…
Fui ver o carro e fiquei boquiaberto! Mas que lindo carro!
Era um Citroen GS Pallas, amarelo, bonito, limpinho, com dois olhos grandes até pareciam que estavam a suplicar para eu o levar…
Este carro tem diversas particularidades que faziam aumentar a minha vaidade pessoal.
Era bastante envidraçado, pelo que entrava muita luz no habitáculo e o melhor é que as pessoas olhariam muito para quem ia a conduzir aquele carrão lindo e vistoso… tinha de ser alguém igual!
Além disso, quando se punha a trabalhar, o gajo subia lentamente de altura! Isso fazia com que fosse extremamente confortável, como se se conduzisse sobre uma almofada de ar.
Mas o mais notável desse carro acontecia quando havia um furo.
Ninguém gosta que lhe aconteça uma coisas destas no seu carro, mas digo sinceramente que desejei que me isso me acontecesse e de preferência no meio da cidade onde era forçoso passar muita gente. Seria uma exibição de vaidosice e peneiragem!
Para mudar um pneu furado nesse carro não era preciso pôr o macaco e levantar o bólide: bastaria accionar o manípulo da suspensão de uma determinada maneira para que esse pneu furado levantasse, ficando o carro suspenso com as outras três rodas no chão! Depois era mudar…
Acertadas as contas, assinado o que era preciso por mais uns meses a pagar, o Senhor Domingos entrega-me o carro numa sexta feira.
– Tenho que ir experimentar o carro!
Decido: vou até à Praia de Montegordo, afinal são só 120 quilómetros de Beja, vou sábado de manhã, volto à tarde.
Saio de manhã e logo depois de Mértola vejo atrás de mim um Alfa Romeu ou Alfa Morreu (como eu lhe chamo) a pressionar-me em jeito de competição. Depois daquela vila havia antigamente dezenas de curvas e contracurvas, perigosas e junto a ravinas de um dos lados.
Claro que acelero nas curvas e o gajo não tem hipóteses; mas vem uma recta e ultrapassa-me – era um 1600cm3 contra um 1000cm3. A guerra repete-se várias vezes e eu começo a temer pelo Amarelinho, não vá eu marrar contra uma árvore logo no primeiro dia!
De tal maneira que após uma curva em que me distancio e ele deixa de me ver, escondo-me com o carro numa vereda fora do asfalto e com muitos arbustos. Passados uns segundos passa o Alfa em grande chiadeira à minha procura… bem, até hoje ainda não me apanhou!
Em Montegordo depois de fazer praia e olhar as meninas de fato de banho completo (ainda não havia esses saborosos biquinis da Mary Quant) vou comer um belo peixe assado no Jaime, um restaurante mesmo dentro do areal.
Naquela Praia há sempre malta de Beja ou de qualquer terra do Alentejo. E também descendentes de Alentejanos. Do Alentejo até ali «é tudo a derêto», diz-se.
Ora sabe-se que dois alentejanos juntos é conversa quase eterna: ou é o cabrão do governo que arrebenta com a gente, ou a Guerra do Ultramar que nunca mais acabam com aquilo, ou é o Benfica que ganha tudo, que até já chateia!
E se forem uma resma de alentejanos, então é cantadoria certa, dessas canções lentas, indolentes, extravasando de tristeza pelos campos grandes serem de uma só pessoa e haver gente com falta de pão para a boca…
Na mesa sempre com um pucarinho cheio do bom vinho, acompanhado com tremoços ou se for tempo disso, de caracóis e caracoletas… que o cantar seca a garganta!
Até se diz em Beja que quem marcar na cidade durante o ano uma rapariga para casar, convém esperar pelo Julho ou Agosto, altura que elas vêm todas para a Praia de Montegordo, então aí poderá vê-la quase em pêlo, sem roupagem. É então que o rapaz analisa o que vê e decide se casa ou não com ela… depois lá na cidade, em Setembro é só bater à porta dos pais dela!
Passei portanto o dia e a tarde a comer camarão, gambas, cerveja, tremoços, vinho, finos ou imperiais (cerveja de copo à pressão) mas sempre com o olhinho lá em frente onde estava o meu último amor – o «Amarelinho» – assim eu o batizara!
Ao fim da tarde tinha que regressar a Beja mas estava meio cheio de cerveja e já com os copos (isto é, bêbado) decidi dormir dentro do carro. Se o assento se reclina todo para trás e faz cama, não fazia sentido procurar uma Pensão ou Pousada para dormir! Bem, o problema na verdade é que dava-me dó deixar o carro na rua e eu refastelado numa bela cama…
Havia ali perto um pinhal perto da orla, entrei por ela, estacionei por ali e deitei-me dentro carro, nu à Pai Adão, era Verão fazia caloraça mesmo à noite. Mas tranquei as portas, não porque tivesse medo de bandidagem, não havia ainda dessa roupa naqueles tempos, mas aquele escuro-breu da floresta fazia impressão… até a Lua tinha dificuldades em romper pela ramagem.
Às quatro horas da madrugada dá-me cá uma mijaneira, da cerveja, do vinho…
Saio do carro e começo a regar a floresta com o meu sal líquido, com a porta do carro meio-aberta. Mais eis senão quando sopra uma briza muito leve de vento, vinda de certeza de Marrocos que fica ali em frente do meu horizonte… e a porta do carro fechou lentamente, e eu cá fora todo nu, o carro todo fechado por dentro, a chave na ignição, no meio da mata, de madrugada… Praguejei e com muita razão:
– Agora é que eu estou bem fodido, cum caralho!
Perante o meu desespero de tamanho contratempo, só havia uma solução a ser executada já e depressa. Partir um vidro do carro!
Rebentar com um vidro do meu lindo e querido carro, amarelinho brilhante, quase novo… e logo na noite de núpcias!!!!
Mas que murro nos cornos eu merecia levar já!
Resignado e pragmático, escolhi o vidro mais pequeno – um pequeno, atrás do lado esquerdo, em formato de losango.
Com uma pedra… bati. Mas o «sentimento» não me deixava bater com a violência necessária… eram, sim, «pancadinhas de amor»!!!
Bem… então decidi: se não tenho tomates para partir uma porquera dum vidrinho daqueles, tinha de procurar ajuda àquela hora da noite e num fim de semana.
Peguei num papelão que estava no meio da caruma dos pinheiros, sujo, alguém limpara as nalgas nele… sacudi-o, tapei as minhas farturas e fui até à estrada de asfalto a 200 metros pedir ajuda!
Coisa de doidos, tá bom de se ver… pedir ajuda a quem, a uma hora daquelas e num dia desses? Tinha de tentar…
Passou um de mota… agitei a mão, gritei:
– Páre, espere aí…
O gajo muito justamente respondeu:
– Se parar, vou-te ao cu, cabrão de merda!
Outra mota com dois pararam e disseram:
– Vamos-te enrabar, panelereiro de merda!!!
Aí agarrei dois bajolos do chão e disse-lhes: «Se não ajudam, vão-se embora e se vêm cá, um de vocês fica aqui estendido com o focinho e as cravelhas partidas!»
Lá se foram, temerosos da coragem deste «panelereiro»!!!
Um automobilista, gritou com a janela meio-aberta, com medo que fosse alguma emboscada:
– Vou chamar a polícia, vais preso… Já não há vergonha, nem respeito… Agora já atacam todos nus!!!
Por fim apareceu uma carrinha com 10 meninas dentro vinham de um bar de alterne ou de putas, sei lá, uma coisa dessas…
O condutor parou, sentindo-se protegido por 10 meninas… Macho não pode mostrar fraqueza perante tanta mulher, né?
Disse-me depois de eu explicar o sucedido:
– Ouve lá, ó meu filho da puta, se é alguma armadilha, partimos-te os cornos num instante, ficas feito num rolo de carne picada! Vamos lá ver esse carro…
Então eu pensei que ele me mandasse entrar na carrinha para indicar o caminho, mas não! Não queria mais nada?
Fui à frente, correndo, mas como ele levava as luzes apontadas para mim e ainda ligou os máximos no meu traseiro, as meninas iam com a cabeça de fora, chingando-me:
– Ai, querido, que belo cu tu tens!
– Mal empregado seres rabicha!
– Queres casar comigo? Ponho logo a render esse belo cu!
…e outros piropos, qual deles o mais ordinário e humilhante!
Chegados junto ao meu querido carro – lá estava ele, orgulhoso, lindo, brilhando ao luar, inocente – o condutor riu pra mim:
– É esse carro? Esse é dos mais fáceis de abrir sem chave! Não dá luta nenhuma! Ora porra…
– Meninas, quem tem aí um corta-unhas?
Foi com essa peça de «alta serralharia» que com um ténue clique o homem abriu num instante o carro!
As meninas continuavam chingando, mas já com outra música:
– Aparece sempre, querido!
– Com esse carro deves ser rico, posso ficar contigo?
– Queres a «minha» corta-unhas?
– Queres emprenhar-me?
Humilhado mas com sentimento de vitória, refastelei-me no carro, antes mijei de novo, mas já não pude dormir – o Sol iluminava com pujança todo o Pinhal!
Se esse meu Burro tivesse alma, por certo me agradeceria todo aquele meu empenho bastante sofrido!
Ainda não parei de rir… soberbo , magnífico, fantástico,!Grande Zé Jorge! Verdadeira ou não, temos que que reconhecer, que é de partir o coco a rir…Parabéns pela tua” brava” e “bárbara” prosa…GRANDE ABRAÇO.