Tudo o que me leva à minha aldeia de há 60 anos é muito agradável e encaro sempre cada lembrança com o mais tranquilo dos sorrisos. E muitas vezes tenho de vontade de contar muito mais coisas, referir muitos mais nomes dos meus vizinhos e amigos desses tempos de há tantos «séculos»…
Começo com duas historietas de aldeia. Há muitas. Cada uma delas traz recordações específicas. Estas histórias, contadas todas as noites na minha infância, que, por mais anos que vivesse, nunca as esqueceria. Pelo contrário, elas saltam de dentro de mim a cada pé de passada…
C’mò Manel Leitão a Rebelhos
Hoje quero lembrar mais uma historieta do Casteleiro. Há lá o costume de se dizer assim, quando alguém vai a um sítio sem saber porquê (esqueceu-se, não se lembra o que veio fazer…): «Vai como c’mò Mané Lêtão a Rebelhos.» Porquê?
A história é simples: havia lá um rapaz chamado Manel Leitão. Um dia à noitinha, o pai disse-lhe assim:
– Ó Mané, amanhã hádes ir a Rebelhos.
Mas não lhe disse mais nada. Nem sequer lhe disse o que tinha de ir fazer. Mas como o Manel era muito bem mandado, de manhã levantou-se, não disse nada a ninguém… e vai de arrancar para Rebelhos a pé. Só quando lá chegou é que se deu conta de que nem sabia ao que ia.
Voltou ao Casteleiro todo chateado a perguntar ao pai, então, o que é que ia fazer a Rebelhos.
O pai fez um escarcéu do diabo, que toda a gente ouviu – e ficou este modo de dizer:
– Olha, este vai como o Manel Leitão a Rebelhos!!!
Que nem um Abade
Outra. Primeiro, o cenário. Quando ouvi este conto pela primeira vez, era pequeno e o local era a beira da estrada mas por baixo do terraço da casa do contador mais exímio e com mais piada que conheci, a casa onde nasceram quatro vizinhos e amigos meus. Eu, miúdo, era todo olhos e ouvidos.
O contador era o Sr. José Carlos Mendes Figueiredo: uma figura. E contava como um artista.
Era Verão. Aquele espaço e mais tarde a «esplanada» da casa da minha mãe era um cenário de convívio permanente à noite.
O Sr. José Carlos (estou a ouvi-lo neste momento) contava que um dia, numa viagem de comboio de Caria para Castelo Branco, um homem entrou num compartimento ou numa carruagem, já não me lembro, e, daí a pouco, puxa da merenda e vai de comer. Mas comer muito. Cada vez comia mais. O padre que ia ao pé olhava, olhava…
No fim do farto repasto, o homem solta esta: «Comi que nem um abade!»
E o padre, lá do sítio onde estava: «Que nem um abade, não. Abade sou eu e não como assim. Você comeu que nem uma besta!»
O Sr. José Carlos ainda não tinha acabado a frase e já era gargalhada geral.
Mais tarde, soube que esta é uma das origens do teatro de revista: o convívio alegre de vizinhos. Ali, era igual. Só faltavam mesmo as palmas.
Ia ao barbeiro e sentia-me gente. Hoje, nem sempre…
De vez em quando, uma memória, uma recordação atravessa-me a mente e faz furor dentro de mim: as idas ao ti’Narciso, o barbeiro. Era mesmo outro mundo.
Apesar de muito pequeno, sentia-me gente. O barbeiro falava comigo. Eu era alguém. Pequeno, mas um ser humano. Não um pagante: um cliente que ele conhecia e conhecia toda a minha família.
Era assim naquele tempo, sim. Mas hoje, quando vou cortar o cabelo, não sou pessoa: sou mais um pagante, como tantos iguais a mim e também sem rosto.
Sem presente nem passado e que importa se tenho futuro?
Traumas
Fiquei feliz por me lembrar da cadeira de barbeiro do ti’Narciso. E de quando me sentava nela para que ele me cortasse a melena.
Mas aí, uma recordação traumática: o mesmo ti’Narciso também me arrancava os dentes… a sangue frio. Que horror, meus amigos.
Só me lembro bem da bacia de esmalte cheia de água com sangue (meu).
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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