A manhã nascia mimoseada por um arzinho fresco e extemporâneo. O nevoeiro sobrava da madrugada e prometia humedecer o início do dia, em princípios de primavera.
Na urbanidade do café ainda escasseavam clientes. As imagens da rua entravam, embaciadas, pela extensa vitrina.
Os carros lembravam sombras errantes navegando pela névoa cinzenta. Algumas pessoas entravam no bar encolhidas e apressadas como se em busca de conforto.
Devagar, curvada e manquejando chegou uma mulher que rondava os oitenta. Um lenço, maioritariamente azul, salpicava-se com desenhos de flores amarelas e agasalhava-lhe a cabeça. Nozado nas pontas, contornava-lhe também o queixo e abrigava-lhe o pescoço. Um xaile preto e extenso prendia-se-lhe nos ombros e terminava onde se iniciava a saia rodada. A mão direita colocava no chão uma bengala tosca, na tentativa de reforçar o equilíbrio. A outra mão segurava um cabaz de verga amarelada.
A mulher descobriu a porta na superfície vidrada, empurrou-a e entrou. De seguida poisou o cabaz e virou-se para a rua. Escusava o empregado de lhe sugerir consumos porque o seu rosto rugoso explicava que apenas procurava comodidade.
Do cabaz que, de quando em quando, parecia vibrar saía um barulho surdo que intrigava alguns dos presentes. Eu estava para sair e ao passar junto à velhota resolvi cumprimenta-la:
– Bom dia minha senhora. Então está frio ou quê?
– Que dialho de primavera!
Nesta altura o cabaz quase deu um pulo. Desconfiado arrisquei:
– Então o cabaz mexe-se sozinho?
– Pois meche, sim senhor. Se não estivesse bem fechado o coelhito já se tinha esgueirado.
Depois, inclinando-se para o cabaz, segredou ao láparo:
– Está-te quedo. Aguenta-te mais um bocadinho. Só estou à espera que o senhor doutor se levante. A esta hora ainda é capaz de estar a dormir.
Curvou-se, acariciou o joelho direito e esclareceu:
– Se não fosse ele nunca mais me arramava a dor nesta joga.
A história estava, finalmente, desvendada. Dentro em pouco a velhota tiraria o coelho do cabaz. Faltar-nos-á saber se o caçapo terá sido bem ou mal recebido pelo senhor doutor. Entretanto esta mulher já havia tirado da cartola a memória de um tempo de simplicidade em que a gratidão caprichava.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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