Não há duas maneiras de o dizer: gosto de ouvir, perceber a fundo e explicar os modos de falar do meu Povo aldeão. Se consigo recuar uns séculos ou mesmo vinte para tentar saber a raiz da coisa, mais feliz me sinto… Hoje trago-lhe dois ou três exemplos surpreendentes. Leia e divirta-se o mais que puder, recordando também as formas de falar do Povo da sua própria aldeia.
Há modos de dizer do Povo no Casteleiro – como em cada terra – que no caso da minha aldeia me encantam supinamente.
Quando as ouvia à minha avó ou quando ainda as oiço à minha mãe, subo uma montanha de contentamento natural.
São formas de dizer coisas que não lembrariam ao diabo de um intelectual, seja ele quem for, mas que soam na boca das pessoas da terra de modo tão natural que diferente seria errado. Bem sei que me entendem.
Há quatro anos, escrevi algumas dessas fórmulas e expliquei-as o melhor que sei e posso. Gostaria de voltar a esse texto, para seu e meu prazer. Apenas três exemplos, com a explicação que acho que têm.
Candauga
A «palavra» é formada pelos sons do que devia ser «cão de água». Significa «malandro», mas com um pouco mais de força e condenação. Quando me demorava muito tempo por lá (expressão típica também, que quer dizer «longe de casa», fora das vistas dos pais), ouvi-as das boas. E quase sempre lá vinha logo a abrir essa do candauga:
– Ah, candauga, isto é que são horas?
Chamo a atenção para a injustiça de não haver feminino neste epíteto. Também é certo que as raparigas não andavam assim «por lá», mas mesmo que andassem, não existe o feminino da palavra, que até seria uma cacofonia, quase:
– Ah, cadeladauga…
Não dá. Só os rapazes é que tinham as honras do título, com direito ao tratamento por candauga.
Mais uma vez, dupla corruptela: primeiro, na pronúncia (cão de água deu candauga); depois, quanto ao sentido: candauga é corrécio, vadio. Ora o que é que o bicho algarvio, que até é muito trabalhador, tem a ver com isso?
Na Wikipédia, aqui, lê-se: «O Cão de Água Português ou Cão d’Água Português é uma raça de cães criada originariamente no Algarve. Estes animais foram empregues como cães de trabalho por pescadores desde tempos imemoriais, mas no século XX tornaram-se uma raça rara.»
Realengo
Eis uma frase muito usada na minha terra há 50 anos:
– Aquela não tem mesmo realengo nenhum.
Isto significa que a pessoa não se orienta, não tem juízo, faz muitas asneiras. «Realengo» é, originariamente, um adjectivo, aplicável a terrenos.
Desta vez também vou ter alguma dificuldade em explicar como é que o povo aqui chegou, a este significado. Aqui, não há qualquer corruptela de pronúncia. Mas há um significado para mim misteriosamente inexplicável.
Como é que uma coisa que é «do rei, real, régio» e que é um adjectivo, acaba na boca do Povo por dar um substantivo a significar juízo, cabeça direitinha? Não sei. Desta vez, não encontro a lógica da evolução da palavra.
A não ser esta: uma coisa que é do rei (Rei, no conceito popular do tempo da Monarquia) era algo muito certinho, legal, direitinho. Daí talvez a evolução para substantivo e para «bom desempenho? Na vida diária.
Não sei. Fica a hipótese e o desafio para alguém mais imaginoso.
Bincemento
Usa-se em frases bem determinadas:
– Não dá bincemento.
Isso significa: não despacha, não acompanha o ritmo. Virá certamente de «vencimento», aqui a significar algo como vitória, de vencer (não de ordenado), ter bom desempenho. Talvez seja esta a lógica da criatividade popular, muito mais imaginosa do que a dos letrados, que essa é muito simples e óbvia…
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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