Desavenças há-as em toda a parte e em todas as idades. Em Quadrazais, entre a criançada, eram alimentadas pelos mais crescidos, que atiçavam os mais novos a pôr o cuspo no nariz uns aos outros.
Passava um miúdo numa rua e apareciam dois ou três crescidos a incitá-lo:
– O Zé diz que não tem medo de ti e é capaz de te pôr o cuspo no nariz!
– A mim? Que venha para cá a ver se é capaz! – respondia o Manel.
E assim começava a bulha, a ver quem era capaz de, em primeiro lugar, pôr o cuspo no nariz do outro. Umas lambadas pelo meio, uns arranhões e a coisa acabava por aí, não sem que o perdedor jurasse:
– O dia que passares à nossa porta vais ver!
Como se a rua da sua casa o protegesse! Ou sentiria a pele protegida pelos pais?
Mas, por vezes, a luta era mais séria, mesmo entre a criançada da escola.
Lembro-me de um dia estalar a contenda entre o Tó Necha e o Zé Jaquim Parente junto da escola, ao São Sebastião. O Tó Necha era amante da pedrada mas, desta vez, encontrou rival à altura. Sobe o parente a rampa para a terra do Mocho e de lá começa a bombardear com pedras, fazendo brecha atrás de brecha ao Necha. O Cagão, irmão do Tó Necha, entra na contenda ao lado do irmão. Dois contra um. Mas o Parente aguenta e vai vencendo os dois. Aparece o outro irmão, o Bravo. Com um cinto na mão, preparado para arriar no Parente, sobe também a rampa do terreno. Julgam que o Parente se acobardou? Qual quê, vá de apedrejar o Bravo.
Só faltou vir o irmão mais velho, o Bate e Foge.
Já não me recordo como tudo terminou, mas o Parente revelou-se um herói da pedrada.
Já entre os rapazolas a coisa era mais dura. Se surgia uma desavença, por qualquer motivo, engalfinhavam-se às lambadas, aos murros e às pedradas.
Com os mais velhos, uma bulha tornava-se perigosa, pois poderia meter facas ou até pistolas.
Presenciei duas bulhas ou barulhos perto da minha casa.
Um dia em que trabalhavam a arranjar a estrada, desata a chover forte. Toca o pessoal a procurar abrigo na minha casa. Meu pai abre a loje e deixa-os entrar.
Começa o Quim Reis a dirigir-se ao Sarangalho, alcunha posta ao pai por estar sempre a encolher e baixar os ombros, como se se coçasse, razão pela qual também era conhecido pela alcunha o Coçalhas:
– Apalpai-lhe o pacote!
O Sarangalho não gosta da brincadeira e começa a insultar o Quim Reis. Palavra daqui, palavra dali e engancham-se à pancada. Vem meu pai e põe os dois na rua, apesar de ser amigo do pai do Sarangalho, também ele ambulante de carroça.
A luta continuou na estrada. Vem o Sarangalho-pai com uma pistola e começa aos tiros para o ar. A luta termina sem haver feridos, após a intervenção de alguém que os apartou.
Acaba também a chuva e vão continuar o trabalho de reparar a estrada.
Noutro dia, à tardinha, vinham estrada acima o João Forneiro, na altura sapateiro, coxo, com o filho Génio, também coxo, que era então o sacristão da igreja, apesar de ser ainda novito. Em casa de meu pai estava o Zé Ferro, que saiu quando o João Forneiro vinha estrada acima. Encontram-se e começam a discutir. O Zé Ferro morde o outro num lábio, a ponto deste ter de ir ao dótor Adalberto, que lhe queria arrancar o lábio, não fosse o filho, também médico, ter aconselhado que lho cosesse.
Tinha havido uma pega na igreja entre o Zé Ferro, mordomo do Senhor, e o sacristão, porque este não lhe abrira a porta da sacristia para o Zé Ferro sair a fazer uma necessidade. O Zé Ferro deu-lhe com a vara de mordomo na cabeça muito levemente, a ponto de o Génio nem se queixar. Mas uma mulher foi logo dizer ao pai do Génio que o Zé Ferro havia batido no filho.
O pai do sacristão não gostou da maneira como o mordomo tratou seu filho. Ficou a remoer a ofensa.
O Zé Ferro vai a casa e traz a pistola até junto de minha casa e começa aos tiros. Meu pai interveio, chamou o Zé Ferro, também ambulante de carroça, para dentro do portão e a coisa lá acalmou.
Nos Domingos e festas, sobretudo da Sant’Ófêmia, quando os copos já ferviam, é que havia mais barulhos, que nem sempre eram pacíficos. Com tiros ou navalhadas, havia sempre umas tripas de fora para o Dr. Adalberto meter para dentro.
Bastava uma simples navalhinha, de meia-lua, para fazer estragos.
Foi o que aconteceu com o Lívio que acabou por matar o Irineu, o seu melhor amigo, numa briga. Espetou-lhe a navalha numa perna, pois o Irineu estava por cima dele. Deve ter-lhe cortado a artéria ou veia e o Irineu desfez-se em sangue. Quando chegou num cavalo ao Sabugal, já não havia remédio. Foi-se o sangue e foi-se o Irineu. E o Lívio foi para a prisão.
Não sei se foi por isso que, mais tarde, já saído da prisão, começou a ter esquizofrenia, que o povo atribuía a possessão do diabo ou incarnação de um morto, pelo que o levavam às capelas.
Perguntem ao Zé Bicho, ao Fausto Caseiro e ao João Lucas quantas navalhadas levaram! Talvez nem eles saibam quantas foram!
Ao Zé Bicho fui eu mais o Cuco levá-lo ao Sabugal no carro do Tó Criau. Esvaía-se em sangue duma perna. Chegados ao hospital do Sabugal, com a bebedeira a abrandar, enquanto o médico lhe dava uns pontos na perna, gritava ele:
– Eu mato-o! Eu mato-o!
Lembrava o Fausto com o: «Eu mato! Eu mato!»
Com navalha matou o Manel Mocho, ainda solteiro, o Pleno, rapaz forte que fora criado no Vale das Grujas, numa casita que os pais aí tinham, perto de outra do Zé Borrega, só tendo vindo para a povoação já grande e tendo casado com a Cucição Fatoco.
Em frente à taberna do Balhé Selada, que ficava onde hoje é a casa da Maria Lucas, desafia o Manel Mocho o Pleno para jogarem ao espadachim. O Pleno não queria. Tanto o chateou que se pegaram à bulha. Espeta-lhe o Manel Mocho uma navalha numa fronte, onde ficou partida parte da folha da navalha. Nada disse ao Pleno. Este passou a ter tonturas e, passados dias, morreu. Lá foi preso o Manel Mocho para Coimbra por uns seis anos, onde acabou por conhecer a mulher com quem veio a casar. Com ele seguiu também preso o primo Raul, que não entrou na briga, mas que estava presente. Foi logo solto.
O Tózinho Soares levava uma vida normal à frente da sua taberna à Fonte.
Tinha um chão às Fontinhas, terra que dava boas batatas. O Valdemar também aí tinha um chão. Encontrava-se lá a mulher do Tózinho e o Valemar começa a discutir com ela e a avançar para ela. O Tózinho vê e avança para o Valdemar com a companheira pistola. Atira-lhe. Com tanto azar que o matou.
Estraga a vida o Tózinho, com uns anos de prisão. Perde a vida o Valdemar.
O Alfredo Marocho foi esperado à sua porta de casa, ao Fole, pelo Augusto Cidade, o Cacheinado e outro familiar. O Augusto deu-lhe um tiro numa perna, os outros acabaram com ele. Já no chão, o Cacheinado dei-lhe um tiro na boca e desfez-lhe a língua. Só o Augusto foi preso. Os outros declararam que nada fizeram.
Numa mesma noite o Valdemar matou a tiro o Quim da Graça, seu cunhado, e o Quim Carrapatinho, que vivia com a Bazaliza. Teve de ir o padre Correia casá-los in extrema morte para poder seguir para o céu.
Entre mulheres os barulhos eram cenas próprias de cinema.
Insultavam-se com todos os nomes possíveis e imagináveis, pondo-lhes a vida ao sol. Pareciam as matracadas do Entrudo. Batiam com as mãos no avental e berravam alto. Por vezes enganchavam-se a puxar o cabelo uma à outra. Lá aparecia uma boa alma saída das mirones, deliciadas com a cena, que as ia desapartar. Normalmente o barulho terminava sem mais estragos, para além de se deixarem de falar, comportamento que era seguido pelos filhos entre si e as contendoras. Os maridos faziam vista grossa, evitavam-se, mas não tiravam desforra por isso.
Notas:
Balhé – Manuel
Bazaliza – Basilissa.
Brecha – ferida na cabeça.
Chão – terreno de cultivo.
Dótor – doutor.
Génio – Eugénio.
Gruja – coruja.
Loje – loja.
Sant’Ófêmia – Santa Eufêmia.
Selada – Salada.
Muitos erros nesta crónica amigo Franklim, tanto nos individuos mortos como nos locais onde tais acontecimentos tiveram lugar, assim como os homicidas. Um abraço.
é POSSÍVEL, MAS FOI ASSIM QUE ME CONTARAM. Um dia me darás a tua versão