Carta ao amigo Francisco António Costa. Tentativa de reconciliação. Julgamento e condenação de Salatra. Só, contra o mundo.
6 de Abril de 1948
Mandei carta ao meu amigo Francisco António Costa, que agora está radicado em Almeirim e com quem tive a honra de privar enquanto viveu em Lisboa, por ter pertencido à comissão fabriqueira da igreja de Arroios:
Meu caro amigo,
Com mágoa lhe comunico que dia 13, pelas 14 horas, tem lugar no tribunal uma tentativa de reconciliação, ou, para melhor, segundo o parecer do meu advogado, uma audiência de julgamento com o vigarista e salteador, o merceeiro (e seus cúmplices), que se fará representar, segundo creio, pelo chefe da quadrilha, o advogado Abel dos Santos, irmão dele e seu defensor, promotor da trafulhice e interessado no assunto.
É com mágoa, pela maçada que lhe posso causar, que lhe peço para comparecer.
Quero deitá-lo abaixo e enviá-lo, desculpe que assim cruamente o escreva, à grande puta que o pariu. Conto muito com o seu testemunho para concretizar esse almejado fim.
7ª Vara, 2ª Secção, Terreiro do Paço, por cima do tribunal do Comércio e por cima da Bolsa, no último andar, que deita janelas para o Ministério da Guerra.
Tenho fé que hei-de ganhar, pois a causa está entregue a Deus.
Muito grato.
Seu amigo dedicado,
Joaquim dos Santos Salatra.
14 de Abril de 1948
Passou-se o dia do julgamento. O juiz começou por chamar as partes para reconciliação, mas o sabujo do merceeiro disse que não me podia perdoar e queria levar o caso até às últimas consequências. Seguimos para a sala de audiências, onde fui interrogado e enxovalhado pelo delegado, pelo próprio juiz e, sobretudo, pelo verdadeiro animal que é Abel dos Santos. Este advogado, irmão do amante de minha mulher e inimigo da minha pessoa, revelou-se um autêntico depravado.
Instruído pela própria manhosice que o caracteriza, vilipendiou-me perante todos, fazendo-me perguntas perversas, como a de se era verdade que não deixava a mulher comer pão com conduto, se a proibia de ir à missa e de falar com as vizinhas. Eu bem negava aquelas perversidades, olhando para o Dr Soares Luiz, para o delegado e para o juiz, mas ninguém foi capaz de mandar calar aquela boca depravada, que me ofendia a cada palavra.
A um ponto, ferido que estava na minha dignidade de homem cristão, tive de lhe atirar uma pedra.
– Este tribunal julga aqui um cristão católico romano, um servidor de Deus e da Pátria, enquanto que os comunistas revolucionários andam por aí impunes, havendo quem lhes bata as palmas.
O que fui dizer. O juiz, um homem pequenino com olhos de rato, ficou de rosto vermelhão, levantou-se e mandou-me calar, ameaçando processar-me por ofensa ao tribunal e á justiça.
Nada havia a fazer, pois estava condenado às mãos do pérfido merceeiro e de minha mulher, que embora minha testemunha, falou para me enterrar ainda mais no lodo em que ela mesma se metera.
Não posso dizer mal do Dr Soares Luiz, que fez o que pôde, com a calma e o saber que o caracterizam, mas na verdade nada conseguiu evitar. O tribunal estava feito com o gatuno.
Fui condenado a pagar ao sabujo uma indemnização de quatro contos de reis por ter atentado contra sua dignidade e lhe ter causado fortes danos sociais e morais. Uma fortuna que o maldito ali ganhou, roubada ao bolso de um português honrado.
15 de Abril de 1948
A condenação em tribunal ficou a dever-se às manigâncias do maldito merceeiro e do seu irmão advogado. Ambos agiram de conluio com a minha mulher, que é falsa fingindo estar do lado do marido.
Francisco António Costa, que eu tinha por amigo, e a quem enviei carta para Almeirim, rogando-lhe que testemunhasse em minha defesa, faltou à audiência e nem uma palavra me enviou de consolo.
Tirando o Dr Soares Luiz, que me tem acompanhado nesta desventura, não possuo outros amigos. Ajo só contra o mundo inteiro que me quer tramar.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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