Uma perna torcida, braço desmanchado, costelas recolhidas, ombros revirados e sei lá que mais…. eram tudo maleitas que podiam ser resolvidas pelo endireita de Roque Amador.Havia outros, mas este era o melhor!…
Acho que hoje poucos se lembrarão do nome do homem. Mas muitos sabem certamente o nome do sítio onde aquele senhor residia e que resolvia pequenas maleitas relacionadas com músculos, tendões e deslocamentos de ossos.
As pessoas das redondezas tinham muita fé no homem de Roque Amador, a quem, os mais crentes por vezes até achavam que era santo. O homem estava sempre disponível e não consta que alguma vez tenha deixado de atender quem o procurava. No Roque Amador não se pagava a consulta. Por norma davam-se alguns géneros ao homem. Naquela época, médico era coisa para as cidades distantes. Nas aldeias, tudo se resolvia à base de chás e endireitas.
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De manhã, bem cedo, o Gervásio, a mulher e a burra puseram-se a caminho de Roque Amador, não sem antes deixarem as coisa em casa meias orientadas e dadas as instruções para os filhos seguirem. No dia anterior, a mulher tinha estado à noite a preparar qualquer coisa para comerem no caminho, quando pela hora do almoço, a fome apertasse.
Podiam ir para Roque Amador por dois locais: Ou pela Miuzela /Cerdeira, seguindo de perto a estrada que entretanto se construiu, ou atravessando o Côa em Porto de Ovelha e seguindo depois por Badamalos, Valongo, Seixo Cró, Rapoula e Roque Amador.
Optaram por seguir pela Miuzela. O Gervásio que a muito custo conseguiu subir para cima da burra, já há muito tempo que não tinha bota onde coubesse o pé esquerdo acidentado e este não dava quaisquer sinais de querer voltar a entrar na bota.
Ir até ao Roque Amador e voltar era gastar um dia inteiro desde antes de o sol se mostrar e até o sol se esconder. Partia-se ainda de noite e chegava-se de noite também.
Por volta da hora do almoço, estavam os 3 intervenientes com o roque amador a vista, depois de terem passado o Cró e a Rapoula do Côa.
Depois de descer do burro, contou os pormenores da queda dos dias anteriores ao homem em quem depositava todas as esperanças. Sentado no chão de fronte para o Gervásio, olhou para o pé, que entretanto estava torto, segurou-o por baixo com uma das mãos e com a outra ia forçando, em movimentos lentos, a colocação do pé na sua posição natural.
Passado algum tempo, e uns quantos ais do Gervásio, colocou-lhe uma “vima” que era uma espécie de adesivo vermelho e com buracos. Depois uma ligadura de linho por forma a que a pele pudesse respirar, como costumava dizer e acto contínuo mandou o Gervásio embora pois o serviço estava feito. Deixou-lhe um alqueire de milho apesar de o curandeiro nunca pedir nada. Mas as pessoas levavam sempre algo da terra que elas entendiam pagava o serviço.
Despediram-se do homem e vá de fazer de novo o caminho para casa agora em sentido contrário, homem em cima da burra e a mulher ao lado a pé.
Junto às termas do Cró desceram para a Ribeira de Boi e, junto a um charco de água que ainda existia, na parte de cima das poldras, soltaram a burra que começou a a lambiscar a pouca erva verde que ali havia. Abriram a cesta e começaram a comer aquilo que tinha sido preparado no dia anterior: Pão, chouriça, e uns pastéis de bacalhau.
Retomado o ritmo foi sempre a andar até chegarem à Miuzela quando o sol já se inclinava no firmamento para os lados da Guarda.
Aí, ainda pararam para comprar duas ou três necessidades no comércio local que funcionava nas imediações do mercado mensal e tinha duas zonas distintas: para um dos lados era a taberna para o outro a mercearia. Claro que ainda tiveram que explicar à dona do comércio, sua conhecida, que tinha acontecido, provocando a mulher do Gervásio por vezes a risada com os comentários que fazia da descrição do acidente “Ele acha que pode voar”.
Avançaram depois, sempre a andar bem, pois até ao Noemi é sempre a descer e, como dizia o Gervásio, a descer todos os santos ajudam a subir é só um e ainda por cima é coxo.
Quando passaram a linha do comboio, tiveram de esperar na passagem de nível, pois vinha lá “o Trama” da Guarda. Claro que assim que passou a última carruagem, a cancela levantou, atravessaram a linha, continuando a descer até ao rio. O rio, o Noémi, nessa altura estava quase seco, e burro e Gervásio passaram pelo leito enquanto a mulher do Gervásio passou pelas poldras e juntaram-se depois do outro lado.
Agora a subida era mais difícil, e até chegarem ao Seixal ainda tiveram que caminhar um bocado, pelo caminho que serpenteia a encosta para conseguir melhor andamento. Do seixal para casa o percurso já é plano e por isso, a facilidade no andamento é notória principalmente quando acabou de se subir a encosta.
Depois da eira de cima e já na entrada da povoação, foi a vez do Ti Zé Rita se meter com o Gervásio que como sabemos vinha em cima da burra enquanto a mulher vinha ao lado a pé:
Então? Agora é você que anda na burra e a mulher a pé?
E o Gervásio lá explicou o que lhe tinha acontecido dias antes, contado agora à sua maneira e que invariavelmente apontava para uma situação de inevitabilidade e não para qualquer situação de menor cuidado da sua parte.
Já em casa, é altura de amparar o Gervásio para conseguir chegar à cama, estender-se onde certamente irá ficar algum tempo e de dar as explicações deste dia ao filho, curioso por natureza, e que não o largava até explicar a função do homem de roque amador.
Raios partam a macieira vociferava o Gervásio à medida que com a mão dava um jeito na perna coxa. Logo agora que tinha ideia de começar a decruar é que me vai acontecer isto. E isto ia ser coisa para pelo menos uns bons dias sem fazer nada. E não fazer nada para um homem que tinha sempre muito que fazer, convenhamos que terá sido castigo suficiente.
Depois de 2 dias de molho as dores começaram a diminuir mas o pé ainda continuava inchado e recusava-se por isso a entrar dentro das botas, embora a vima começasse já a descolar-se lentamente, o que segundo os entendidos era sinal de que a cura estava para breve.
Mais uns dias e já o Gervásio amparado a uma vara de freixo suficientemente forte que agarrava no cimo com a mão esquerda e reforçava com o apoio da direita que agarrava mais abaixo, se ia deslocando nas imediações de casa, com o pé no ar, balouçando à medida dos passos.
Mais algum tempo, começou a pousar o pé no chão, pouco a pouco e a fazer algumas coisas que não exigiam esforço de maior. Decruar é que ainda não e este ano já não havia forma de preparar a tempo a arada para o próximo ano sem ter de andar na terra enlameada. Dentro de dias começava a chover e depois a terra ensopada não pode ser lavrada.
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«Do Côa ao Noémi», opinião de José Fernandes (Pailobo)
Com certeza absoluta o nome do santo homem era Candido. A (Flor Pina) tem todos os detalhes porque ela e uma descendente directa. A sua fama tambem era alem fronteiras. Viam-se carros com matriculas de varios paises a fazer visitas ao Rocamador.
Obrigado josé pela achega.
Parece que afinal ainda não temos o problema do nome do senhor resolvido. Sebastião ou Cândido?
Quanto ao nome, parece que o problema também existe. Mas, parece-me que aí não haverá muito a fazer, A sonoridade do nome levou à desagregação do conjunto “Rocamador” em duas palavras “Roque Amador” que as pessoas pronunciam. O som aqui, sobrepôs-se à grafia. Mas a nossa e as outras linguas estão cheias de casos destes que não são um mal.
jfernandes.
Ainda ha varios parentes e descendentes do Sr. Candido (Flor Pina) no grupo dos descendentes do Sabugal que podem testemunhar nome e demais detalhes. Eu conheci-o extremamente bem porque a minha conta foram quatro visitas nao contando com os restantes familiares. Alem disso ainda fomos varias vezes fazer piquenique no seu lameiro junto ao Rio onde havia muitos vivaldes tipicos do rio Coa…
Senhor José, sabe-me dizer que o Sr. Cândido ainda é vivo?
Algum seu descendente continuou a sua arte?
O indireita que morava numa casinha de rés do chão que ficava perto do terreiro da capela era filho dos meus bisavós. Era portanto tio avô do meu pai. Chamava-se Cândido e era da família Fernandes
Fui varias vezes visitar esse ilustre endireita… por varias mazelas, sempre me recebeu afavelmente e resolveu o problema imediatamente. Era o Sr. Candido do Rocamador que atendia a todos com a mesma humildade e simplicidade. Lembro-me de la ter ido pelo menos 4 vezes. A minha admiracao foi quando endireitou o meu irmao, com as costelas torcidas e sem poder respirar. Para mim esse foi trabalho de “OSCAR”…
AVicente:
Finalmente alguém que recorda o nome do célebre homem. SEBASTIÃO.
É que, até hoje, apesar de ter investigado, não tinha encontrado que soubesse o nome.
Obrigado pelo apreço.
JFernandes
Pena que Rocamador se tenha transformado em Roque Amador. Rocamador se chamava o lugar, por antiga dependência de Santa Maria de Rocamadour, invocação que, ainda hoje, preside à matriz de castelo Rodrigo.
Obrigado pelo texto, poesia pura. Fez-me recordar a noite em que o taxi do «Jesus» me conduziu à casa do Sr. Sebastião. Esse é o nome que a minha memória recorda.
Já na sala, alumiada por uma candeia, lembro uma pequena carícia das suas mãos sobre o meu ombro esquerdo.
Afastou-se, de seguida, um pouco e quando a sua voz me ordenou que segurasse a laranja que me atirava, o braço, até então imobilizado, ergueu-se num rompante.
A clavícula tinha regressado ao seu devido lugar.
Há cinquenta e oito anos recordo a ternura daquele olhar.