Finda a ceifa, quase de imediato iniciava-se a carranja. A palavra é esquisita, mas era mesmo assim que se dizia. Transportar para a eira o que se ceifou é contribuir para que dentro de pouco tempo tenhamos grão de centeio.
Textos anteriores: Introdução, Decrua, Estravessa, Sementeira, Arique, Monda, Ceifa.
Instrumentos 1, Instrumentos 2, Instrumentos 3.
Concluída a ceifa iniciava-se quase de imediato a “carranja”. Carranja vem de carranjar que quer dizer transportar. Consistia em transportar o centeio das cearas para a eira onde aguardava o momento adequado para ser malhado.
A eira era um dos locais comunitários da aldeia e, no caso beira raiana, fruto da riqueza do subsolo em granito, as eiras (na minha terra havia 3) desenvolviam-se em lajes, resultantes das aflorações graníticas que sobressaem do solo.
A carranja era feita em vários dias seguidos e por norma eram precisos 2 homens, um carro e uma junta de vacas para a executar.
O carro deslocava-se às cearas que tinham sido ceifadas e, de rolheiro em rolheiro, carregava todos os molhos de centeio de cada um para o carro, com vista ao seu transporte para a eira. A forma como os molhos de centeio eram colocados no carro era muito importante pois caso não houvesse determinadas regras, o carro transportaria muito pouco de cada vez e não era isso que se pretendia. Por isso, tirava-se partido dos estadulhos do carro, principalmente dos que se situavam à frente e atrás, os quais serviam para segurar os molhos e alargar a área do próprio carro. Um caro de centeio tinha um volume muito superior ao que os estadulhos e o carro definem fruto da arrumação do centeio.
Para quem não sabe, chamavam-se “estadulhos” aos paus de madeira que eram de secção quadrangular na base e cónica (afiados) no topo. Eram encaixados pela base no carro onde existiam orifícios com a dimensão e forma idênticas à da base. Cada carro de vacas possuía por norma 4 estadulhos de cada lado.
O carro era carregado, por um homem que se posicionava no chão e fazia chegar ao que estava em cima do carro os molhos um a um. O que estava em cima do carro ia arrumando com a técnica referida, os molhos no carro, servindo-se dos estadulhos.
Quando o carro estava carregado a mais do meio da altura dos estadulhos era altura de travar a carga. Tratava-se de fazer passar uma corda entre todos os estadulhos, de forma cruzada, isto é dum estadulho de um dos lados passava para o do outro lado do carro. Depois de ter sido dada a volta a todos os estadulhos do carro, as cordas eram calcadas com os pés junto dos estadulhos o que fazia apertar a carga. No fundo, os estadulhos acabavam por ser apertados uns contra os outros, já com os molhos colocados.
O objectivo de travar a carga era permitir uma maior segurança no transporte pois os caminhos não eram famosos e havia buracos em tudo quanto era sítio.
Depois continuava-se a carga até ao cimo dos estadulhos e no final colocava-se de novo uma corda que dava várias voltas à carga para a segurar. Era então altura da deslocação até à eira onde, com as mesmas regras o centeio era agora tirado do carro por um homem e arrumado na mêda pelo segundo.
Na eira, os molhos de centeio que iam sendo transportados das cearas onde tinham sido construídos os rolheiros durante a ceifa, eram agora organizados na zona circundante da eira deixando toda a parte central livre.
Quer a tarefa seguinte fosse manual ou mecânica, a parte central da eira, durante a carranja mantinha-se sempre livre. Esta forma de proceder, que não estava escrita em lado nenhum era automaticamente assimilada por todos de forma a que todos pudessem fazer a sua carranja sem prejudicar os restantes.
Não passava pela cabeça de ninguém colocar o centeio no meio da eira, pois a malha que era a tarefa seguinte, abrangia toda a gente daquela aldeia. Assim o centeio era colocado em redor da eira, de forma a que o espaço central e a entrada ficassem desimpedidos.
A forma comunitária como as pessoas viviam e geriam as diferentes tarefas rurais quando podiam ter influência nas dos vizinhos, ainda hoje constituem verdadeiras lições de vida comunitária que, nos meios urbanos nunca existiram.
O centeio era agora colocado em “mêdas” que eram algo do mesmo tipo dos rolheiros mas de muito maior dimensão. A sua construção também obedecia a regras próprias destinadas a proteger o centeio. Por um lado, como já se disse, o local de implantação das medas era na envolvente da eira. As mêdas eram construídas umas encostadas às outras e desenvolviam-se em altura.
Por norma a sua construção era feita colocando os molhos de centeio em filas circundantes, com a parte das espigas voltada para o centro da meda o que conduzia a que no final da carranja as medas apenas tivessem visivel a parte do restolho dos molhos, para além da cobertura.
As medas eram protegidas na parte exterior superior por molhos de centeio que faziam escorrer a água da chuva caso acontecesse chover o que não era muito vulgar em Julho/Agosto mas às vezes acontecia.
Depois de todas as famílias terem feito a sua carranja, por vezes com entreajuda comunitária, iniciava-se a malha.
Nota: Agora que as eiras estão compostas, é altura de tratar da malha. Mas malhar, seja de forma manual ou mecânica é assunto para o próximo texto desta série, necessariamente publicado no pino do verão. Só no verão faz sentido malhar!…
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«Do Côa ao Noémi», opinião de José Fernandes (Pailobo)
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