A primeira Irmandade da Misericórdia, criada em Lisboa por permissão, consentimento e mandado da Rainha Senhora Dona Leonor, esposa de D. João II, em 1498, votada à prática das obras de misericórdia, a breve trecho avassalou o Reino, em que as Irmandades da Misericórdia se tornaram o principal agente de solidariedade social, melhor, de caridade activa. (1 de 2.)
Inferimos este termo de caridade activa da parábola do «bom samaritano» (Lc., 10, 29-37). Quando deparamos com alguém necessitado de ajuda, tendemos a murmurar piedosamente «coitadinho», e seguimos o nosso caminho, supondo que este fugidio sentimento de piedade é quanto basta para ser caridade. A caridade activa vê, julga e actua. Não murmura um coitadinho, pára e trata dele. As Irmandades da Misericórdia devem ser estações de serviço das obras de ajuda ou de cura corporal e espiritual.
É evidente, mesmo sem necessidade de pesquisa morosa, que uma obra como esta tem produzido inumeráveis títulos bibliográficos que as contemplam segundo múltiplos prismas, mas todos redundando em uma ampla e sugestiva historiografia, sendo relevante o volume de bibliografia atinente às Irmandades locais. Quanto a problemas sócio-político-jurídicos, olhados segundo uma visão geral e abrangente, a bibliografia disponível é porventura menor.
Ora, dá-se o caso de haver dois historiadores (historiadores de facto, apolegetas e juristas) que são nossos compatrícios. Este nosso contributo não quer constituir uma adulação campanilista. Quer, de facto, homenagear dois sábios cujas obras têm sido repetidas vezes utilizadas e citadas na bibliografia das Irmandades da Misericórdia. Dá-se o caso de esses autores serem de Riba Coa (Fernando da Silva Correia, do Sabugal, e Carlos Diniz da Fonseca, nascido em Torres Novas mas com raízes na Ruvina, Sabugal, onde sempre teve casa e onde jaz).
O primeiro e modelar historiador das Misericórdias portuguesas, na obediência a uma metodologia crítico-científica, foi o Dr. Fernando da Silva Correia (Sabugal, 20.5.1893 – Lisboa, 19.12.1966), médico e higienista, que também usou o pseudónimo «Velho Galeno». Antes dele, e ainda depois dele, publicou-se diversa bibliografia, a mor parte dela monográfica, relativa aos temas da assistência em geral, e das Misericórdias locais em particular, a par de escritos histórico-hagiológicos, realçando a singularidade da instituição, em certo dia de graça criada pela Rainha Dona Leonor, adjuvada pelo trinitário Fr. Miguel Contreias.
Também a pretexto dos diversos Congressos das Misericórdias (1.º em 1924, e outros dos quais temos ainda conhecimento, do 4.º em 1958, e do 7.º em 1985, mas presumimos que tivesse havido mais) diversa bibliografia de cariz historiográfico, jurídico, político, etc., veio a lume.
Fernando da Silva Correia era filho do jurista e etnógrafo Joaquim Manuel Correia (Ruvina, Sabugal, 1858 – Caldas da Rainha, 1945) autor da notável obra de antropologia cultural Terras de Riba Coa. Memórias sobre o Concelho do Sabugal (1946, com novas reedições fac-similadas pela Câmara Municipal do Sabugal) e um romance, Celestina (ed. póstuma, Sabugal, 2008) sobre episódios das guerrilhas carlo-miguelistas.
Fernando da Silva Correia nasceu na vila do Sabugal, onde seu pai exerceu a advocacia até 1904, antes de se transferir para Peniche e Caldas da Rainha, onde exerceu diversas funções político-administrativas, e sempre atento à vida cultural. Por deferência de seu filho, que residia na Rua Gomes Freire, em Lisboa, foi-nos dado a conhecer o romance inédito Celestina, a propósito do qual escrevemos breve nótula em 1968, propondo a sua publicação.
Revertendo ao Dr Fernando da Silva Correia, ele preparou a sua obra prima através de uma regular publicação de estudos científicos, desde logo sobre o Hospital das Caldas da Rainha (1930) e, depois, sobre problemas de higiene e de política sanitária, da medicina social e da saúde pública.
A obra que lhe dá jus a lugar de relevo, e que jamais pode ser omitida na bibliografia do tema, intitula-se Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas. Dedica-a à Mãe e ao Pai, evocando a sua austeridade, inteligência, bondade e espírito de sacrifício e bom exemplo. A obra constitui o fruto de um trabalho mantido com perseverança durante mais de vinte anos (segundo informa em Nota Final).
Numa introdução de fundamento epistemológico e teórico, define o conceito de assistência, as dificuldades de levar a efeito uma História das Misericórdias e os períodos da História da Assistência em geral. Escreve:
«A palavra (…) no seu sentido mais lato, significa auxílio, socorro». E adianta: «Simples auxílio instintivo e intuitivo, caridade divina, beneficência, filantropia, etc.; assistência individual ou social, particular ou pública, tudo são ideias e conceitos que as circunstâncias têm exigido e mais de uma vez têm sido confundidos», no entanto, esclarece que «pouco interessam as palavras, desde que a noção sejam compreendida e fixada».
No essencial, o Autor, em acto de modéstia declara querer apenas esboçar uma síntese das frases e factos da História das Assistências, para compreender a sua evolução no nosso país.
O corpo da obra é formulado em quatro partes:
a) A Assistência na Antiguidade (desde o antigo Egipto à Roma Imperial); b) A Assistência Cristã antes do Século XVI, (com tónica na Idade Média, considerada a «idade do oiro» da assistência cristã com um completo elenco de instituições, como albergarias, asilos, mercearias, gafarias, etc.); c) A Assistência em Portugal na Idade Média (compreensiva análise político-social e assistencial, pondo em relevo as instituições anteriores às Misericórdias); e,
d) A Reforma da Assistência em Portugal no fim do Século XV (em cujo âmbito biógrafa personalidades e trata com relevo a Misericórdia de Lisboa).
A obra é completada com três úteis Índices (geral, de gravuras e analítico, muito pormenorizado).
A Misericórdia de Lisboa ocupa o capítulo 36 (pp. 555-588), estudando a sua origem, o Compromisso, as dignidades, e as obrigações do que é a alma da «nação caritativa».
A tese da originalidade da Misericórdia de Lisboa é pelo autor submetida a uma análise por vezes considerada menos simpática. Ele não nega que a obre fosse fundada «por permissão, consentimento e mandado de Dona Leonor», mas propõe a existência anterior de uma pluralidade de misericórdias, embora sem este nome, considerando que a Misericórdia de Lisboa proveio de uma remodelação, não sendo uma instituição original portuguesa, nem tendo sido obra inventada pela Rainha, mas tendo sido «a mais notável e completa confraria de caridade de que há memória em Portugal», não havendo no mundo instituição cujo programa se lhe compare.
Com efeito, a instituição teve em mente e em propósito de actuação, as 14 obras de misericórdia, a saber: 7 corporais (dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos e enterrar os mortos) e 7 espirituais (dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do próximo e rogar a Deus por vivos e defuntos).
Fernando Correia postula que «o modelo de todas as Misericórdias é o de Lisboa» e «o seu Compromisso é o mais perfeito e completo de que há memória», e é muito pormenorizado quanto à organização e às actividades.
O movimento de seguir o modelo de Lisboa em breve alastrou a todo o país, e, quando Dona Leonor morreu (1525) já havia pelo menos 61, e quando Fernando da Silva Correia concluiu o livro (Agosto de 1944) havia um total de 371 excluindo as do Ultramar. A finalizar, o volume oferece uma listagem das Misericórdias existentes, listagem essa de que outros historiadores se têm servido.
A obra de Fernando da Silva Correia continua utilíssima, constituindo uma fonte imprescindível de consulta e cremos que bastaria intrapolar nela um capítulo sobra as vicissitudes e mudanças posteriores a 1944, sobretudo às de 1975 e seguintes, para a obra ficar como nova.
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«Carta Dominical», por Jesué Pinharanda Gomes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Fevereiro de 2007 a Setembro de 2018)
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