Um casteleirense em Lamego. Na tropa, pois claro. E que tropa!!!! Depois do sucesso de uma peça que publiquei aqui no «Capeia» há tempos sobre o tempo que passei em Cabinda, ficou-me a vontade de voltar às minhas fortíssimas memórias desse maldito tempo de tropa. Hoje entro por Lamego dentro. Mandaram-me para lá para fazer um curso de treino duríssimo: Operações Especiais. Corria o mês de Outubro de 1971 e estive lá até Janeiro. Conto aqui um episódio dos primeiros dias. Vocês vão gostar outra vez. E a mim faz-me bem. A base deste artigo foi escrita há muitos anos para uma publicação do Batalhão a que pertenci. Daí, a linguagem solta – e nisso não mexi, por uma questão de princípio…
O que sofri em Cabinda, meus amigos, apesar de tudo e da iminência da morte, nem por sombras me fez sofrer tanto ou sentir fisicamente tão mal como quando sofri o que me fizeram em Lamego. Tortura física. Tortura psicológica em último grau.
Cabinda foi mau. Muito mau. Mas Lamego foi péssimo. Muito péssimo.
Nem que viva 300 anos – e é mais ou menos isso que devo durar depois de Mafra, Lamego e Cabinda! – nunca poderei esquecer o que me fizeram naquelas onze semanas de Penude.
O rio era gelado. Mas boa parte do treino era feito na água. Sem frio. Quero dizer: sem acusar que se dá pelo frio. Sem medos. Tudo psicológico: «Ranger, oyé».
«Praxe» em Lamego? Sim! E das piores…
Fui para Lamego fazer o segundo ciclo de instrução, depois de três meses em Mafra e depois de um dia – um, apenas um dia – em Santarém (e chegou: foi um dos piores dias das minha vida de tropa forçada)…
Nessa noite mandaram-me embora e, no dia seguinte, mandaram e tive de me apresentar numa coisa Chamada Centro de Instrução de Operações Especiais – o tal, em Lamego. Foi o princípio de uma saga infeliz.
Naquela altura, havia uma espécie de praxe para quem chegava. Na primeira noite, ataram-nos dois a dois e meteram-nos em Unimogs tapados com lona. Chamavam a esta operação a Largada (em Lamego são 11 as operações e cada uma é maior e mais perigosa e dura do que a anterior – e todas têm nomes sugestivos…).
Operação Largada
Levaram-nos para distâncias de muitos quilómetros. Deixaram-nos abandonados aos pares, atados, longe uns pares dos outros lá no meio das serranias, muito longe de Lamego. Nada de comida. Apenas o cantil da água. Havia um aviso: tínhamos de nos desenrascar, desatarmo-nos e estar às sete da matina para o pequeno almoço no quartel, em Penude, uma serrazita a quatro quilómetros de Lamego. Era obrigatório chegar juntos ao quartel. Ah! e um alerta muito sério, tipo ameaça: proibido pedir comida, proibido apanhar boleias. Se fôssemos apanhados em falta, não íamos de fim-de-semana durante um mês ou coisa no género.
Lá ficámos, eu e o meu parceiro. Depois de meia hora, tínhamos conseguido desatar aquela coisa.
Começámos a andar a pé pela serra, em direcção à luz (era meia-noite ou coisa que o valha). Fartei-me de andar. Claro que me doíam os pés. Claro que amaldiçoei a tropa toda. Mas lá continuámos.
A velhota amiga
Aí pelas cinco (da manhã), finalmente uma casita paupérrima, uma quintazita. Batemos. Vem uma senhora de idade (ou pareceu-nos: aos 20 anos, tudo o que tenha mais de 40 é cota, bem o sabemos).
Pedimos comida. A senhora desculpou-se. Não tinha nada. Só se quiséssemos umas batatas cozidas e umas azeitonas. Sim, claro, fosse o que fosse.
Meus amigos! Que boas que são as batatas cozidas. E se houver azeitonas pretas como aquelas, então são mesmo um acepipe. Experimentem estar nove horas sem comer nada e depois comam duas batatas com azeitonas pretas… Ainda hoje me lembro do exacto sabor do pequeno-almoço dessa matina.
Imagens para toda a vida
A nossa memória, não me canso de o dizer, é um mistério. Não me lembro nunca de coisas que se passaram na semana passada. Coisas do dia-a-dia, quero dizer: coisas a que o cérebro não atribui importância suficiente para serem gravadas.
Mas com coisas como as que hoje lhe conto, tudo é diferente: passaram há 43 anos – e estão cá dentro tão frescas como se estivessem ainda a acontecer – «salvo seja!», como se diz na minha terra para dizer que oxalá que não…
Ao longo de toda a vida, quando vejo batatas cozidas, não resisto e, se puder, até peço umas azeitonas, de preferência pretas… e como-as assim mesmo: sem molho, sem azeites, sem nada: só as batatinhas e as azeitonas pretas. Ui!…
Só uma nota final para quem tenha interesse nestas coisas: o trauma de Lamego foi tal que andei uns 18 anos a fugir ao pedido da família de lhes ir lá mostrar os locais do «crime». Até que um dia lá fomos. Estava de oficial de dia um aspirante novinho que, apesar da dureza do treino que ali ainda se dava, nem queria acreditar nas três ou quatro ideias que lhe dei do que lá tinha passado. Foi forte. Está gravado cá dentro e bem fundo.
Notas
1. A foto das serranias da zona de Lamego, que retirei do site «Olhares», é da autoria de José Lopes. Sobre ela, alguém comentou que lhe faz lembrar Penude, Lalim e Lazarim e os tempos horríveis que passou nos Rangers. A mim também. Conheço muito bem estas encostas, que repetidamente cheirei, a rastejar…
2. Consulte todos os dias «Serra d’Opa», gazeta regional no Facebook… (Aqui.)
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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É adequado trazer-lhe aqui os comentários feitos até este momento no «Descendentes» / Facebook:
Maria Máxima – Aplaudo a actividade, a persistência e empenho do nosso amigo José Carlos no sentido de promover as nossas terras. Os seus testemunhos são uma das formas …
Josécarlos Mendes – Dra Máxima , ainda bem que mo diz. Às vezes penso que estou a ser egocêntrico. Agradeço o apreço.
José Figueira – Eu também estive em Lamego/Penude nas Operações Especiais/Ranger no final de 72. Durissímo
Josécarlos Mendes – Olá, José Figueira . Então sabes do que falo!!! E a Guiné não era pera doce, menino!!!
José Figueira – Exacto, eu sofri mais em Lamego do que na Guiné, um Abraço Ranger
Leonilde Capelo Loureiro – Duro!!! Mas creio que falar disso ajuda,não é?
Josécarlos Mendes – Perguntem ao José Figueira , Leonilde !