«A revolta dos rios Noémi e Diz», é uma fábula contemporânea (2013). Se todos os seres vivos e não vivos falassem uma linguagem comum certamente que se entenderiam muito melhor. Mas não falam. Por isso, a fábula da revolta dos rios parte do pressuposto de todas as fábulas, isto é, todos falam a mesma linguagem. Mas mesmo assim nem todos se entendem…
Era uma vez um rio (Noémi), que corria livremente desde Vale de Estrela até Castelo Mendo, onde as suas águas se juntavam às de um outro maior (o Côa) e que assim se tornava maior ainda.
Tudo funcionava normalmente até que a partir de certa altura o rio maior começou a notar que as águas do mais pequeno, eram acompanhadas de detritos e espuma, pouco próprias de um rio. E resolveu questioná-lo.
O Côa: Ó Noémi, o que é que se passa com as tuas águas que chegam a mim sujas e estragam as minhas. Vê lá se resolves o problema pois isto não pode continuar.
Noémi: (adoentado e abatido) Eu não posso fazer nada, pois quem me suja as águas são algumas pessoas lá para a Guarda que despejam nelas substâncias que não devem. Mas vou ver se posso fazer alguma coisa.
O noémi que já tinha recebido reclamações dos habitantes das margens, dos animais, das plantas, resolveu falar com o Diz para tentar perceber o que lhe estava a acontecer, pois era do Diz que vinha o problema..
Noémi: Ó Diz, será que não podes deixar de mandar para mim água suja? È que isto dá-me cabo da saúde, e para além disso, quem de mim se alimenta e mata a sede, também está a ficar doente.
O Diz (também doente e abatido): Tens toda a razão. Isto vem daquela fábrica (e apontava com o dedo). Já falei com as autoridades, com o Presidente da Câmara da Guarda, com o dono da fábrica e nada. Continuam a despejar em mim aquilo que sobra da fábrica.
Noémi: E se fossemos os dois falar com o dono da fábrica para o demover?
O Diz: Não tenho grandes esperanças, mas vamos.
E lá foram ambos falar com o dono da fábrica, logo de manhã,pelas 8h00, a quem tentaram explicar as razãoes da sua vinda.Na entrada da fábrica era grande o movimento de trabalhadores em que, uns atrás dos outros iam entrando para trabalhar.
Noémi e Diz: Bom dia senhor empresário.
Empresário: Bom dia, digam lá o que querem pois eu tenho de trabalhar. Eu não sou um rio. Eu trabalho.
Diz: Nós não trabalhamos, mas damos alimento às gentes, animais e plantas que bebem a nossa água. E é precisamente por isso que aqui viemos, pois os animais e as plantas estão a morrer.
Empresário: Outra vez a mesma coisa? Eu não te disse já há uns tempos que a culpa não é minha? Eu não posso fazer nada!…
Interveio a seguir o Noémi, que era mais forte
Noémi: Senhor empresário, eu até nem passo ao pé da sua fábrica mas o meu colega…
Empresário (interrompendo): Mas então o que que tem a ver com o assunto? Despache-se que eu tenho mais que fazer.
Noémi: Como dizia, eu, apesar de estar a alguma distância da sua empresa, estou a ser questionado pelo nosso colega mais velho (por ser maior) o Côa, que se queixa da qualidade das minhas águas para além dos animais e das plantas que se queixam das doenças que estão a apanhar por as beberem.
Empresário: Então não as bebam. E que é que eu tenho a ver com isso? Eu nem o conheço e muito menos aos animais e plantas que para lá moram. Lá o Diz sei quem é, é meu vizinho e por isso, ainda vá que não vá, devo-lhe alguma atenção, agora a si, ou mesmo ao Côa ou sei lá a quantos mais, tenha paciência!.. O meu tempo é dinheiro.
Noémi: Mas será que não podemos falar para tentar perceber o problema? Aqui o Diz que é seu vizinho, também se queixa.
Empresário: Com o Diz trato eu. Com os outros trate quem deve.
Noémi: Mas o senhor já viu que o problema que existe com o Diz, se propaga depois para mim e depois ainda para o Côa e até para o Douro, pois a água que aqui passa chega ao Porto. Por isso, o problema é de todos.
Empresário: Bem, agora só falta dizerem que eu sou o culpado daquilo que acontece no Porto que nem sei bem onde fica pois poucas vezes la fui. Aparece-me cá cada maduro… Mas… espere aí. Disse que a água ia para o Porto?
Noemi e Diz : Sim. A água que corre em nós entra no mar na cidade do Porto.
Empresário: Vão vender essa a outro. Então o Porto não é mais acima? Agora a água corre para cima. Não me façam perder tempo!…
Mas já que vieram até aqui, sempre vos digo que não me parece nada de anormal estes despejos que a minha fábrica faz de tempos a tempos para poder funcionar. Mas se acham que isto faz mal vão queixar-se a quem tem obrigação de receber estes despejos e nada fez.
Noémi e Diz: Quem?????
Empresário: A Câmara da Guarda. Quando a minha empresa se instalou foi-lhe prometido que apenas era obrigada a fazer um pré-tratamento dos resíduos e que a partir daí era com a Câmara. Se não fizeram o que prometeram, que culpa tenho eu? Fecho a Fábrica? Despeço as pessoas? O que é melhor? Haver emprego ou temos uns ribeiritos que de vez enquando para lá despejamos os detritos? Eu não tenho dúvidas.
Noémi e Diz: Os seus filhos e netos não pescam nem se banham nas nossas águas?
Empresário: Deus me livre. Mas já agora, por que é que só implicam comigo? Por que não refilam também com quem tira água para regar ou para beber?
Noémi e Diz: Esses não nos estragam, a água que tiram e rega os campos, ou mesmo os açudes para alimentar os moinhos não estragam a água. Bem, nós vamos andando, que já é tarde.
Depois desta peripércia, decidiram então deslocar-se à Guarda para falar com o Presidente da Câmara.
Porteiro da Câmara: O que é que querem daqui?
Diz: Nós queriamos falar com o Sr. Presidente da Câmara.
Porteiro: O senhor Presidente não deve poder atendê-los por que tem muito que fazer e até nem sei se esta cá.
Diz e Noémi: Nós viemos lá de baixo da zona da estação de propósito para falar e por isso daqui não saímos enquanto não colocarmos o problema.
Porteiro: Então é melhor esperarem sentados…… Pois eu já disse o que tinha a dizer.
Entretanto, na entrada da Câmara, os funcionários que circulavam de um lado para o outro, acharam estranho que dois rios estivessem ali para falar com o Presidente e vai daí começaram a passar a palavra. Pouco tempo depois, eram já algumas dezenas aqueles que se amontoavam no átrio mais pela curiosidade e cuscuvilhice de verem dois rios na Câmara. Quando a confusão já era grande, chegou um senhor bem posto, jovem, engravatado que, dizia-se, era o chefe de Gabinete do Presidente.
Chefe de Gabinete: Então o que é que se passa aqui? Ninguém trabalha hoje?
Os funcionários começaram a desandar… à medida que iam olhando para trás como que para apanharem qualquer desenvolvimento da conversa
Chefe de Gabinete: O que é que os senhores querem? Digam depressa que eu tenho muito que fazer.
Noémi e Diz: Nós, queriamos… (são bruscamente interrompidos pelo interlucutor).
Chefe de Gabinete: Mas… vocês são rios… então não é aqui. Dirijam-se ao nosso Departamento de Ambiente e falem lá. Que cheiro!… e leva a mão ao nariz.
Noemi e diz: Já falámos em todos os sítios e dizem-nos que o assunto é mesmo com o Sr. Presidente. Por isso, queriamos falar com ele.
Chefe de Gabinete: Isto não é assim. Se querem falar com o Presidente têm de marcar primeiro e depois logo se vê quando ele os pode atender.
Noemi e Diz: Nós andamos a pedir audiências desde há largos anos e nunca fomos recebidos e nunca vimos o Presidente lá na zona onde costumamos estar.
Entretanto, o porteiro cumprimenta servilmente um senhor que vinha a entrar na Câmara, sobretudo nos ombros, que ia balouçando a cabeça em jeito de cumprimento à medida que avançava. Os funcionários que restavam no hall de entrada, iam-se empurrando uns aos outros para trás abrindo espaço para o senhor passar. O Chefe de Gabinete, sobressai do ajuntamento e dirige-se ao tal senhor, e segreda-lhe qualquer coisa ao ouvido.
Presidente: Só problemas… Esta gente só cria problemas, e eu que tenho tanto que fazer. Mas que cheiro… que cheiro é este?
Presidente: (voltando-se agora para os rios): Bem, mas então qual é o problema?
Noémi: O problema é que as nossas águas continuam a ser conspurcadas com os detritos da fábrica de lanifícios.
Presidente: Você quase não pertence ao meu concelho. Só passa numa pequena parcela. Por isso eu não sou a pessoa indicada para resolver o seu problema.
Noémi: Mas o Diz é do seu concelho na totalidade e é dele que vem o problema.
Presidente: O Diz tem boca para falar e não precisa de porta voz. E do Diz trato eu. Mas afinal qual é a questão?
Diz: (a mêdo…) Senhor Presidente como já lhe disse várias vezes, o dono da fábrica de lanifícios continua a despejar nas minhas águas os detritos da fábrica.
Presidente: Ah!… da fábrica. Mas o problema está quase resolvido. Espere aí.
(O presidente telefona ao empresário)
Presidente: Ó… Então você continua a despejar no DIZ os detritos da fábrica?
Empresário: Mau… Mau… Então o senhor não sabe que ainda não ligou a fábrica ao emissário?
Presidente: Bem… Mas isto tem de acabar!… Olhe que eu… Agora tenho de desligar que tenho muito que fazer. (e desligou). (Voltou-se a seguir para os rios).
Quanto a vocês, e como viram, comigo ninguém brinca e o problema vai resolver-se, podem ir descansados.
(Os rios voltaram para os seus leitos e passados alguns meses tudo continuava na mesma).
Reuniram-se então com os habitantes, com os animais e plantas que deles se alimentavam e comunicaram-lhes a decisão que ambos tinham tomado. Iam abandonar o vale onde tinham nascido e sempre vivido.
Nesta assembleia houve várias propostas dos moradores e utilizadores dos rios, algumas muito violentas que passavam por destruir a conduta da fábrica.
Nada demoveu os rios. E a reunião acabou com eles a informar da decisão que tinham tomado. E foram embora …. Pensa-se que mais para norte onde não existiam problemas deste tipo. Agora passaram a ser afluentes da Ribeira das Cabras. Com eles foram os poucos peixes e animais. Ficaram as plantas e as pessoas.
Passado algum tempo, havia grandes contestações quer na fábrica por parte do empresário e trabalhadores quer na Assembleia Municipal onde as populações se dirigiram. A situação estava ao rubro.
Empresário: Esta agora! Então o rio foi-se embora? Então e agora para onde deito o lixo? Vou já ligar ao Presidente. E ligou.
Presidente: Sim. Diga lá. Você criou-me um problema que não sei como vai ser resolvido. Estou aqui na Assembleia Municipal com centenas de pessoas enfurecidas a reclamar.
Empresário: Eu? Ó senhor Presidente, eu é que tenho aqui um problema. Sabe que os rios se foram embora?
Presidente: Sei, sei. É isso que está aqui a ser discutido. (ouvia-se grande algazarra na assembleia) Eu agora tenho de desligar.
(Entretanto na fábrica os tanques estavam cheios e não havia para onde descarregar essas águas)
Empresário (para os trabalhadores): Estão a ver o problema que me arranjaram? Será que vocês não podem interferir junto dos rios para que voltem?
Trabalhadores: Nós? Nós sempre defendemos o tratamento dos efluentes.
Empresário: É que se o problema se não resolver vou ter de fechar a fábrica e despedí-los. Não estão à espera que despeje os efluentes à porta da fábrica?
Entretanto, na Assembleia Municipal o Presidente assumiu o compromisso de ir reunir com os dois rios estivessem eles onde estivessem. É que, as comemorações do dia de Portugal eram este ano na cidade da Guarda e tinha chegado da Presidência da República um guião para a visita Presidencial. E não é que estava prevista uma deslocação às margens dos rios?
Presidente: Esta agora!, que dirá o Presidente da República quando vier à Guarda e não vir os Rios? É uma situação complicada!
Meteu-se no carro foi ter com os rios ao seu novo leito…
Presidente: Então meus senhores será que não podem voltar para os vossos leitos? É que nem imaginam a revolução que está a haver para aquelas bandas. Vocês têm que ser responsáveis. Atitudes radicais só provocam mais radicalismo e nada resolvem.
Noemi e Diz: Nós, embora com pena, estamos bem no local para onde fomos obrigados a vir. Os animais e peixes que nos acompanham estão felizes e por isso não queremos voltar.
Presidente: Onde é que está o vosso sentido comunitário e beirão! Não podem pensar só em vocês. É preciso também pensar nas pessoas e na natureza dos vossos anteriores leitos. Voltem lá…. Até por que vem aí o Sr. Presidente da República. E se ele quiser ver-vos?
Noémi e Diz: Nós só regressamos se o problema que nos obrigou a partir estiver resolvido.
Presidente: Claro que se resolve já! (e telefona para os SMAS)
SMAS: Estou? Senhor Presidente?
Presidente: Sim, sim. Olhe lá, será que não pode ligar-se o emissário à central que se fez?
SMAS: Pode, falta só ligar um troço de colector.
Presidente: E isso é quanto? (…). O processo que avance rapidamente pois essa obra urgente (…). Não quero saber se há orçamento ou não.
SMAS: Mas senhor presidente se ligarmos o emissário, não podemos ligar uma aldeia que se ia ligar agora e que o senhor prometeu.
Presidente: A aldeia que espere. Este assunto é mais importante.
(As obras foram entretanto feitas e o emissário ligado. O presidente fez publicidade desse facto em todos os órgãos municipais e na primeira assembleia que houve depois disso anunciou:)
Presidente: Quero aqui esclarecer que o problema daqueles dois ribeiros que estão no vale da estação já foi por mim resolvido apesar de terem sido outros a criá-lo.
Oposição: Não é bem assim. O seu partido tem tantas culpas no cartório como nós. Já agora, os rios já voltaram?
Presidente: Ainda não. Mas vou obriga-los a vir quanto antes. Comigo não brincam. Sou eu que mando… Até por que, daqui a dias chega o Sr. Presidente da República e… parece que quer ver os rios.
Passados alguns dias os rios voltaram ao seu leito. Era o que mais desejavam. Ali tinham nascido e vivido antes de terem mudado de leito.
As suas águas eram agora límpidas e toda a bicharada e peixes que delas se alimentava faziam serenatas ao luar em que as rãs eram os actores principais.
Pior tratadas estavam as plantas que, com a ausência dos rios começaram a secar. Mas agora iriam recuperar.
Quando as águas começaram a chegar ao Côa que andava intrigado por o Noémi ter secado, e em paralelo ter verificado que a Ribeira das Cabras se tinha transformado num rio caudaloso que quase competia com ele é que o Côa ficou a saber o que tinha acontecido.
Moral da história
Por vezes, só com medidas drásticas e radicais se conseguem resolver problemas. Se o Rio Diz e o Noémi pudessem mudar de leito para outro local, e mudassem, o problema certamente já estaria resolvido.
Nota: Este texto é apenas uma fábula. Qualquer semelhança dos personagens com a realidade é pura coincidência.
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«Do Côa ao Noémi», crónica de José Fernandes (Pailobo)
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