À Fala Com… Alcínio Vicente – Estivemos à conversa com Alcínio Vicente, natural de Aldeia do Bispo, concelho do Sabugal, que recentemente decidiu regressar à sua terra natal, onde instalou o seu atelier de pintura. É licenciado em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e cursou Direito na Universidade de Lisboa. Enquanto pintor participu em inúmeras exposições individuais e colectivas e tem quadros nas Câmaras Municipais do Sabugal, Sintra e Guarda, no Sindicato dos Bancários, no Museu Soares Branco e em colecções particulares em Portugal, Espanha e França. De falar calmo e ponderado, estrutura o seu raciocínio sem deixar pontas soltas, discorrendo sobre arte e estética, não esquecendo a sua forte ligação às terras da raia sabugalense.
– Considera-se um pintor enraizado na cultura popular, nas vivências deste povo raiano que tem uma cultura e uma idiossincrasia própria?
– Este povo passou de facto por imensas dificuldades que eu próprio vivi e acompanhei na juventude e que nunca esqueci. Na Raia o trabalho agrícola, de sol a sol, complementava-se com a prática do contrabando, à noite. A vida era um improviso constante, porque as pessoas não sabiam nunca como seria o dia seguinte. Mas o geral dos dias passava-se sem traumas, sem dor, sem sofrimento ou angústia, mau grado as incertezas quanto ao futuro. A verdade é que não havia futuro, o que me leva a pensar que ou as pessoas eram irresponsáveis e não tinham a noção da vida, ou então consideravam que o importante era ter pão para hoje e para amanhã, garantindo o essencial. É muito difícil, com o olhar de hoje, ter consciência de como se viveu e sentiu antigamente. Eu gostaria de plasmar num quadro as etapas, as aventuras, as histórias do que aconteceu nos últimos 60 ou 70 anos e assim evidenciar a evolução do nosso concelho, como se passou de povos superpovoados, com casas onde viviam pessoas e animais, para aldeias que não são mais do que antecâmaras para o cemitério. Hoje as casas estão vazias, há alguma gente idosa mas não há crianças.
– De facto noutro tempo as nossas aldeias estavam pejadas de crianças…
– E isso acontece hoje noutras sociedades, mas não no nosso interior que tem tendência a transformar-se num gigantesco cemitério onde as pessoas virão de tempos a tempos depositar flores.
– Saiu novo destas terras e realizou-se profissionalmente em Lisboa, onde também se formou, conviveu e se fez artista. O que sente no regresso à aldeia da infância?
– Tenho uma certa dificuldade em expressar o que sinto. É preciso ter uma grande capacidade de readaptação, porque tudo mudou. Estas terras não são o que eram e portanto não é um regresso ao passado é um regresso a uma parte dele. Para mim este regresso é um acto de amor, porque se me impôs com uma enorme violência, por razões de ordem familiar.
– É uma readaptação…
– Embora no meu imaginário esteja tudo presente, nunca me desliguei completamente das minhas raízes. Elas foram a fonte da minha criatividade. Nunca as repudiei, ainda que vivesse num ambiente citadino, culturalmente melhor elaborado. Aqui há muita cultura e muito saber, que se nota sobretudo no contacto com as pessoas simples e com a Natureza, porque a cultura vem de baixo, ela entra-nos pelos pés e sobe-nos pelo corpo, invade-nos. A nossa capacidade para reflectir sobre a humanidade e sobre os problemas e os dramas que nos cercam, faz-nos crescer e notar o que é a verdadeira vida das pessoas, porque quando vivemos em ambientes citadinos nem sequer temos tempo para nos concentramos e analisarmos o mundo em que nos integramos.
– Este regresso é também uma ruptura?
– De certa forma, porque a minha vida seguia num sentido determinado, com continuidade, ainda que nunca se tenha afastado completamente do passado.
– A sua pintura parece reflectir esse apego ao passado, com temas ligados às vivências antigas, com cenas rurais, alusivas às tradições da aldeia…
– Estão lá essas vivências, mas acrescidas de uma vida cheia de novas experiências, de muito estudo e muito trabalho, amizades, viagens, de tudo. Tive oportunidade de reflectir sobre o mundo e sobre os comportamentos das pessoas com quem lidei ao longo da vida. As pessoas vão assumindo comportamentos diferentes à medida que evoluem. Entram para a Universidades como quem entra num banquete, alimentando-se abundantemente do que lhe põem na mesa, mas depois vomitam o que aprenderam e entram num vazio. Nunca aceitei isso para mim, sempre quis que a minha vida fosse como que uma roda que faz um trajecto, sem acidentes, e vai acumulando saber e novas experiências. É essa evolução na continuidade que nos capacita para interiorizarmos novas vivências. Na Faculdade o melhor que apreendi foi a capacidade de compreender, de observar e de tolerar os outros.
– A arte demonstra esse conjunto de aprendizagens?
– A arte é para mim um desafio. É juntar cores, formas, sentimentos e emoções. Quando eu conseguir um registo da brisa da manhã ou as curvas descritas pelo vento que passa, então conseguirei os meus objectivos. A arte é afinal aquilo que se arranca de nós próprios para um qualquer suporte. A arte é fábula ou realidade, é ironia ou ternura, realidade ou imaginário, abstracto ou figurativo, classicismo ou vanguarda. O objecto da minha pintura são as pessoas e não as coisas, porque estas não sofrem, não vivem dramas nem se atormentam com dúvidas. A arte de hoje não alcança as aspirações criativas do homem nem no objecto utilitário, nem a reflexão optimista que o homem deve ter do mundo. A arte é um espectáculo mas um espectáculo consequente e não algo efémero que se esgota no momento. O acto criativo é sempre desencadeado por uma emoção externa levando o artista a dar-lhe um enquadramento. Os postulados ou axiomas que configuravam a arte caíram tornando-se mais complexa a sua compreensão para quem inicia a aventura do seu estudo. Uma pintura é como um cenário, a tela onde tudo se vai passar. O pintor tem de estudar os planos, a distribuição das personagens a sua caracterização os espaços ou perspectivas, de modo mais ou menos complexo, consoante a linguagem que utiliza. De qualquer maneira, a obra de arte tem de ser referendada, isto é, implica que as grandes massas humanas se revejam nela, que a aceitem como algo seu independentemente de quem a produziu.
– Quando pinta um quadro já planeou o que vai fazer, ou a pintura sai-lhe de momento, do improviso face às emoções?
– Primeiro estruturo uma ideia e depois vou preenche-la com elementos, onde normalmente está o ser humano. Ilustro a ideia que quero reproduzir, que tem sempre algo de emocional. Mas o que desencadeia o acto criativo é uma emoção forte a que depois queremos dar forma, corporizá-la. Tem que haver uma autenticidade entre aquilo que se pensa e aquilo que é corporizado na tela. Se assim não for há uma espécie de falsidade e não teremos a verdadeira arte. A arte é a nossa linguagem, o transvasar e o libertar nas nossas emoções e sentimentos – como vemos o mundo e como achamos que este mundo deveria ser. Aliás o artista não tem que reproduzir uma determinada realidade, até porque hoje há imensos meios técnicos para isso, o que é importante é que o artista consiga acrescentar e fazer ressaltar algo face à realidade.
– Nas suas pinturas, além do elemento humano e do movimento, nota-se também a presença de muitas cores, por vezes dispostas num contraste que parece excessivo. Esse jogo de cores e de contrastes é afinal também uma forma do artista transmitir as suas emoções?
– Digamos que quando pinto não tenho uma ideia muito estável do que vou elaborar e recorro às cores para construir e delimitar as formas. Tenho sempre a preocupação de colocar na tela o espaço, a forma e a cor, que são três elementos fundamentais. Crio um espaço artificial onde coloco depois o cenário onde as pessoas se movimentam e representam o seu papel. Não me limito a pintar toiros e cavalos, também pinto ambientes urbanos e humanos e até outros com maior abstracção, onde a figuração não está presente. Mas a cor é para mim o elemento fundamental. Não há mundo sem cor. Ao plasmar cores e tonalidades, procuro doseá-las de forma diversificada, tendo em conta o cumprimento de onda e os equilíbrios, ou desequilíbrios, que pretendo construir. As cores têm também significados, o vermelho pode ser o perigo e o branco a pureza, mas as cores que uso têm sempre a ver com o equilíbrio, para que não exista uma composição extremamente agressiva. As cores, tal como as palavras, têm significados e pesos, desencadeando reacções psicossomáticas.
– Já lhe aconteceu pintar um quadro com todo o empenho e no final concluir: não, isto não me satisfaz?
– Não gosto de rejeitar aquilo que faço. Posso dar uma obra por inacabada, mas nunca a rejeito. Quando pinto sei o que quero, porque já estruturei uma ideia, escolhi as cores que pretendo usar e as emoções que quero transmitir. Insisto sempre para que a obra reflicta essa ideia inicial, mas remodelo-a as vezes necessárias, se caso for, para que seja aquilo que eu quero. Continuo a pintar encerros, porque ainda não houve algum em que eu dissesse este é o encerro. O artista nunca está inteiramente realizado e quer alcançar sempre algo mais perfeito.
– Falemos agora sobre a cultura nas nossas terras. A Bienal de Artes do Sabugal acabou após quatro edições, sendo que o Alcínio participou activamente na realização da última. O fim da bienal não foi o descartar de uma oportunidade para o Sabugal se manter ligado às artes, à cultura e tirar partido desse facto?
– Foi uma perda muito grande, porque significou menosprezar a importâncias das artes. A arte está presente em qualquer ramo da actividade humana. Está numa mesa que se constrói ou na arquitectura de uma casa, ela é uma aspiração que vem desde o tempo das cavernas e acompanhou sempre a humanidade. A arte é uma forma de se manifestarem as emoções. Do ponto de vista fenomenológico, primeiro existiu a coisa e só depois existiu a palavra. Ou seja, deu-se o nome às coisas porque elas existiam. As formas são fundamentais e um povo não evolui se abandonar a arte, porque é através dela que a actividade humana ganha sentido. Isto é válido para a Economia, porque o mercado ganha-se com a qualidade dos produtos, que tem a ver não só com os aspectos ergonómicos mas também com a capacidade imaginativa e criativa, pois muitas vezes é a forma dos produtos que lhes confere capacidade para concorrer no mercado. Mas voltando à Bienal, ela foi uma manifestação cultural fundamental e foi uma grande perda para o concelho deixar de se realizar.
– Os tempos de crise que agora vivemos têm levado os governantes a dar relevância a outros factores que se consideram mais importantes, menosprezando a arte e os artistas…
– Vivemos numa sociedade elitista onde se ignora que a arte é a fonte de tudo. Os manipuladores e mentores da sociedade actual, vivem no mundo da retórica e da oratória, pensando que as palavras são tudo. Ora as palavras não são nada se não tivermos em conta as acções dos homens. Vive-se do efémero e esquece-se aquilo que é essencial, que é a capacidade de reflectir sobre o mundo, conceber e criar coisas. Falar de factos e de acontecimentos não é o fundamental, porque falamos muito do passado e esquecemos o provir. Ora a arte possibilita a fruição de algo que dá prazer e deleite, que desencadeia emoções.
– A arte não gera riqueza, dizem…
– A arte pode não gerar riqueza, mas ela representa a cultura de um povo, o que nos identifica enquanto tal. Quando a arte faltar gera-se a estandardização e a globalização, perdendo-se a diversidade.
plb
Concordando com José Fino que diz “…também a pintura, relativamente ao pintor, são a expressão mais íntima do que lhes vai na alma”, terei que acrescentar que, com as palavras do Alcino, fiquei a melhor conhecer a alma deste pintor. In casu, uma alma linda.
A propósito do anterior artigo “Elogio da cor” deste nosso pintor e poeta raiano, escrevi eu: “se possível, dêm à estampa mais telas e mais poesia deste nosso artista que a alma da gente raiana bem merece ser saciada com iguarias desta natureza”. E, nem a propósito, eis que surge mais uma tela e uma entrevista da sua autoria onde a cor, a luz e o movimento da pintura se confundem com a palavra, a dor e o sentimento da prosa, tudo em perfeita sinfonia a brotar da alma do artista.
Tal como a poesia, relativamente ao poeta, também a pintura, relativamente ao pintor, são a expressão mais íntima do que lhes vai na alma.
BEM-HAJA,Alcino Vicente,por esta magistral lição!!!
Uma entrevista muito interessante da parte de um artista muito sensível que sabe o que quer seja quando fala seja quando pinta. Um conterrâneo, irmão de um antigo colega de Liceu, por quem nutro muita admiração e carinho. Que continue a produzir arte variada como tem feito que é aquilo que realmente sabe e deve fazer. E por muitos anos…