Iniciámos na semana passada uma sequência de crónicas que pretende, modestamente, lembrar e homenagear alguns dos extraordinários homens de ciência que Portugal teve a felicidade de possuir, na transição do século XIX para o século XX. Começámos por Sousa Martins, prosseguimos hoje com Câmara Pestana e continuaremos nas próximas semanas com Ricardo Jorge e Miguel Bombarda.
Em comum, estes quatro brilhantes espíritos de médicos e cientistas tiveram o amor pela Ciência e pela Humanidade. E, com excepção de Ricardo Jorge, todos eles deram a vida pela nobre causa da Medicina: Sousa Martins, infectado pela tuberculose pulmonar, que sempre combateu; Câmara Pestana, contaminado quando procedia a pesquisas relacionadas com um surto de peste bubónica no Porto; Miguel Bombarda, assassinado a tiro por um dos loucos que tratava.
Outro grande médico, Egas Moniz, o único prémio Nobel português até hoje, também mereceria emparceirar com os que referi, mas situa-se já, cronologicamente, fora da época definida. Na verdade, António Egas Moniz (1874-1955), académico, professor, político, diplomata, escritor, médico psiquiatra e investigador de renome internacional, pertenceu a uma geração filiada na dos grandes investigadores oitocentistas, sendo um autêntico herdeiro das tradições de pesquisa e de devoção à causa da Medicina nascidas naquele período. Tentaremos traçar-lhe o perfil de cientista e homem de cultura noutra ocasião.
Atendendo aos acanhados limites da investigação científica em Portugal, foi uma época de ouro aquela a que nos referimos. O número e a qualidade dos cientistas que então tivemos só é explicável pela evolução histórica da Europa em geral e do próprio País em particular. Na verdade, a segunda metade do século XIX assistiu ao culminar de um processo que se iniciou com a revolução científica do século XVII e colheu os benefícios do racionalismo iluminista do século XVIII.
A partir do século XIX, o ensino passa a ser encarado como uma obrigação do Estado. Competia a toda a sociedade, e não apenas à Igreja, o dever de instruir. Dá-se a laicização do ensino: as escolas tornam-se locais destinados à formação de cidadãos e à transmissão dos conhecimentos, independentemente das convicções religiosas de cada um. Os governos fundam cada vez mais estabelecimentos de ensino, criam ministérios encarregados de tratar dos problemas da educação e, em muitos países, o ensino primário torna-se obrigatório e gratuito. O analfabetismo regride, particularmente nos países industrializados. Os liceus e as universidades introduziram disciplinas novas, como as Ciências da Natureza, a Matemática, a Física, a Química, etc.
Em Portugal, as reformas pombalinas tinham lançado as bases de um ensino renovado e os governos liberais continuaram a mudança: Passos Manuel cria os liceus nacionais e funda a Escola Politécnica e o Conservatório Nacional; um pouco mais tarde, Fontes Pereira de Melo e Emídio Navarro criam o ensino técnico profissional (um domínio em que a Casa Pia, fundada por Pina Manique em 1780, tinha sido pioneira).
O desenvolvimento do ensino prepara e estimula a investigação científica, particularmente no campo das ciências experimentais. As propostas filosóficas positivistas reordenam e sistematizam o conhecimento, forçando as próprias ciências sociais e humanas a estabelecerem metodologias rigorosas e a conquistarem o estatuto de verdadeiras ciências, como a sociologia, a psicologia ou a história.
Os laboratórios europeus tornam-se palco de verdadeiros «milagres». Os físicos, os químicos, os médicos fazem descobertas cuja aplicação transforma por completo a vida em todo o planeta. A aliança entre a ciência e a técnica torna-se um factor de progresso e de bem-estar: a indústria, os transportes, as comunicações e a própria vida quotidiana beneficiam dos conhecimentos alcançados no silêncio dos laboratórios.
Desenvolvem-se os estudos sobre a electricidade, que passa a ser aplicada como fonte de luz, calor e força motriz; as descobertas no domínio do electromagnetismo, com Maxwell e Hertz, conduzem à invenção do telefone (por Bell) e da telefonia (por Marconi); Charles Darwin expõe a sua teoria evolucionista; Mendeleiev estabelece a primeira tabela periódica dos elementos; Pierre e Marie Curie estudam a radioactividade; Roentgen descobre e aplica os raios X; Pasteur descobre a existência de microrganismos e formula com rigor o princípio das vacinas; Koch identifica o bacilo da tuberculose; etc., etc.
É no meio de todo este prodigioso desenvolvimento científico, cuja divulgação é facilitada pelos novos meios de transporte (como o combóio) e de comunicação (como o telégrafo), que devemos situar o excepcional surto de investigação médica no nosso País. A Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra possuía, desde a reforma pombalina ou pouco depois, Teatro Anatómico, Museu de História Natural, Jardim Botânico, Gabinete de Física, Dispensário Farmacêutico e Laboratório Químico. A partir de 1836, com Passos Manuel, são reestruturadas as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto.
Estavam lançados os fundamentos do ensino médico que havia de produzir frutos de grande qualidade na segunda metade do século XIX, entre os quais Câmara Pestana.
Luís da Câmara Pestana nasceu em 1863, no Funchal. O pai, notário, morreu quando Câmara Pestana tinha 16 anos de idade. Pelo lado da mãe, é descendente de um dos descobridores e povoadores da ilha da Madeira, Gonçalves Zarco.
A partir de 1879, o jovem Luís frequenta o liceu do Funchal, onde se revela um estudante excepcional. Terminados os estudos secundários ingressa na Escola Médico-Cirúrgica do Hospital de SÃO. José, em Lisboa, onde se forma com distinção, em 1889. Perante um júri presidido pelo Doutor Sousa Martins, apresentou uma tese de licenciatura intitulada «O micróbio do carcinoma», que o tornaria de imediato uma das jovens promessas da investigação médica em Portugal. Como médico e investigador do Hospital de São José viria a desenvolver um trabalho notável. Será então que descobre a grande paixão da sua vida: a bacteriologia, nessa altura ainda uma ciência embrionária, cujos inícios se deviam às pesquisas de Louis Pasteur, em França. Para Câmara Pestana foi criado um modesto laboratório bacteriológico, aproveitando uma dependência da rouparia do Hospital. Aqui, nestas instalações precárias, inicia uma obra de pesquisa que viria a ser continuada por sucessivas gerações de investigadores.
Câmara Pestana começa por se dedicar ao estudo de uma das mais assustadoras doenças do seu tempo: o tétano. Através de cobaias, chega à descoberta da imunização activa, ou soroterapia. Paralelamente, na Alemanha, Emile Behring alcança os mesmos resultados com outro método: a quimioterapia, através do tricloreto de iodo. Em 1901, Behring receberia o Prémio Nobel pela sua descoberta, mas, se houvesse justiça, Câmara Pestana tê-lo-ia recebido ex-aequo.
Sousa Martins, de quem Câmara Pestana era um dos discípulos dilectos, envia-o para Paris, onde aperfeiçoa os seus conhecimentos de bacteriologia, no Instituto Pasteur. Depois de regressar a Lisboa, desenvolve estudos sobre a febre tifóide e sobre a «epidemia lisbonense», até aí considerada uma expressão local da cólera morbus. Em 1894, Câmara Pestana, contrariando a maioria dos seus colegas, descobriu o «vibrião de Lisboa» e provou tratar-se de uma doença diferente.
Graças ao apoio da rainha D. Amélia, esposa do rei D. Carlos, que muito admirava o trabalho de Câmara Pestana, foi construído de raiz um novo edifício, no Campo de Sant’Ana, para albergar o Laboratório Bacteriológico. Aí, o jovem investigador (com pouco mais de 30 anos), tornou-se um mestre conceituado da microbiologia, atraindo inúmeros discípulos, como Aníbal Bethencourt, Morais Sarmento, Carlos França, Aires Kopke, Francisco Gentil e tantos outros.
Em 1899 declara-se uma epidemia de peste bubónica no Porto. Câmara Pestana é nomeado membro da comissão nacional que, em conjunto com médicos estrangeiros, procede ao estudo da doença. Em colaboração directa com Ricardo Jorge, desmultiplica-se em vários trabalhos, procedendo a exames bacteriológicos e à produção de vacinas e soros.
Quando autopsiava um pestífero, Câmara Pestana corta-se com um bisturi e é contagiado. Infectado pela peste, regressa a Lisboa e morre no Hospital de Arroios, com apenas 36 anos de idade. Desaparecia assim um dos mais promissores investigadores portugueses, um homem tocado pelo génio da ciência, de cujas qualidades e devoção muito havia ainda a esperar.
O Instituto Bacteriológico de Lisboa receberia depois o seu nome e tornar-se-ia um importante centro de investigação no domínio de vários ramos das ciências médicas, tais como a Histologia e a Oftalmologia.
Luís da Câmara Pestana, cuja vida foi curta mas fecundíssima, tornou-se um dos nomes de referência da investigação científica em Portugal. Foi um daqueles homens cuja existência permitiu outras existências. Tal como Pasteur, Koch, Roentgen, Sousa Martins e tantos outros, se não tivesse existido, talvez alguns de nós também não existíssemos.
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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