E da Antiguidade aos nossos dias, o touro continuou animal de culto, porque na Península Ibérica sempre foi um animal abundante e todos os povos terão tido uma relação próxima com o animal ao longo dos séculos.
Prova-se pela universalidade do ódio do cristianismo ao touro e cultos mitraicos, que arrasou templos, estatuária e ritos, substituindo-os por outros como o de aspergir com água benta, procissão do «Corpo de Deus» ou no «Sagrado Lausperene», figuração do demónio (conotado com Mitra).
Contudo, os rituais, mais ou menos escondidos, nunca deixaram de ser realizados, assim se provando que a religião derrotada sempre permanece. Para Espírito Santo (1995), as touradas portuguesas, nomeadamente as chamadas populares, têm a sua origem «nestas corridas populares do fim das ceifas, do solstício ou do fim dos trabalhos agrícolas, em Setembro» dos cultos mitaricos em que as festas do final das colheitas e da partilha incluíam sempre touradas seguidas de abate e comida.
Em conclusão, o touro tem sido, além do símbolo de deus, vítima de expiação e repasto colectivo, o elemento central da «festa» e da sua função redentora no Social. Por seu lado, Ferreira (2007), afirma que «para muitas religiões e mesmo povos o tourear é como homenagear um deus que se encontra na figura do touro».
Este culto permanece ainda hoje nas touradas, as quais celebram a força, potência e fecundidade, porque o touro, possuindo um arreigado sentido de territorialidade, possui coragem e força bruta, é manancial de abundância, estruma as terras e quando domesticado, era um auxiliar dos trabalhos agrícolas.
A capeia é por isso também, como as restantes manifestações tauromáticas, celebração da força, potência, fecundidade, força bruta do touro da manada e força tranquila, manancial de abundância do boi agrícola;.
E assim sendo, além de reminiscência de um culto sagrado, é, neste tempo em que a vertigem da vida moderna e o barulho ensurdecedor das máquinas impedem o homem de ouvir a sua voz interior, um retorno de cada um que nela participa, ao caminho do campo, onde respira o ar variável das estações, da irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranquilo do outono, o cheiro das árvores da floresta, e revive a serenidade melancólica e sabedoria madura do camponês que de madrugada, no tempo certo do ano, sai com os bois para a arada, farnel na cestinha, seguido do grande cão de guarda.
O carvalho do forcão, recordando a árvore mais alta do paraíso, aberta à amplidão do céu, cujas raízes mergulham na fertilidade da terra primordial, resume esta espécie de «Gaia Ciência» da vida em que o homem só é verdadeiro e genuíno se for como o carvalho: disponível ao apelo mais do mais alto e sensível à protecção da terra que sustenta e produz.
A Capeia é, por tudo isto, a celebração de uma liturgia colectiva em nome da natureza, em nome da liberdade absoluta, em nome da amplidão, que contrastam com a liberdade e a cultura das cidades.
E sendo uma liturgia, compõe-se de um conjunto de actividades, gestos, símbolos, linguagem e comportamento, cuja origem, perdendo-se no tempo, que lhe dão um significado próprio.
Obedece a uma lógica, tem uma finalidade, estrutura e causa, e acrescenta um resultado real aos participantes.
No caso da capeia, os símbolos utilizados são o touro e o forcão e o carvalho, que têm a ver com o culto da fertilidade, como já observamos, associados ao mitraísmo e culto de dionísio.
A sequência do seu ritual é a preparação do forcão, o encerro, o desfile, a lide do touro, e o desincerro.
A simbologia do forcão e a lide do touro já os tratamos aqui num texto anterior, para o qual remetemos; o encerro e desincerro, têm semelhanças, e talvez a sua origem longínqua esteja nas procissões dionisíacas e mitraicas; e o desfile com as alabardas no desfile de falos nestas festividades.
É este o ritual que tem caracterizado a capeia e lhe tem dado um sentido coerente. Realiza-la sem qualquer uma destas etapas é desvalorizá-la e empobrecer o seu significado de culto de regeneração e fertilidade.
Um significado coerente com toda a triologia festiva de Cima-Côa, cristã e também pagã, que é constituída pela missa matinal com sermão e procissão, a capeia pela tarde e o arraial ou adega pelo fim do dia.
O primeiro invocando o favor propiciatório do céu, o segundo celebrando a força geradora da natureza, e o último consagração ao sémen fertilizador do homem e libação à seiva frutificante da videira.
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente
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