O Toino e o Baltar eram dois serventes na famosa Mina de Aljustrel, a tal do oiro amarelo casado com a pirite verde. Faziam tudo o que era preciso: levavam, traziam, punham, compunham, partiam, desfaziam, transportavam… eram pau para toda a colher!
Deviam ser muita competentes, pois entraram na Empresa sem cunhas!
Quando foram contratados tiveram que dar o nome certo lá nos papéis de muitas linhas. Na verdade eram António e Baltazar mas como estavam no Alentejo, para ficar mais rápida a conversa comeram-se as letras e ficaram Toino e Baltar. Como eram de outras paragens, bem longe de Aljustrel, logo se tornaram companheiros inseparáveis, quer no serviço ou fora dele, nos passeios e deambulâncias pelas ruas a subir e a descer da vila.
Depressa se organizaram para o dormir, os comes e os bebes.
À noite, depois da banhoca debaixo de uma mangueira presa com arames, acomodavam-se num contentor metálico que fora esquecido perto da entrada da Mina por uma Empresa Metalúrgica do Barreiro.
Com uma gambiarra puxaram a luz com uma ligação manhosa da Mina, embrulhada em plásticos. Assim poupavam uns tostanitos de renda de casa e a luz era à borliú.
Nas bebidas, é claro que estavam quase sempre apoisados na Taberna do Filipe. Sentados numa das mesas, com um pouco de linguiça, azeitonas ou uma fatia de queijo de ovelha do verdadeiro e o casqueiro que traziam nos bolsos, iam emborcando copos de tinto, daquele pesado que só há aqui no Alentejo.
O resto da malta na tasca já não ligava ao paleio deles – daquela mesa só vinham impropérios e bocas das venenosas, a toda a hora:
– Cabrões! Filhos dum cabrão! Puta cos pariu! Paneleros!
Já sabiam que se referiam a algum chefe ou então ao Bochechas, que era quem mandava nessa altura no Rectângulo.
O Toino e o Baltar estavam preocupados com a mansão onde viviam. No inverno a coisa ainda se gramava, pois o frio afastava-se com mais ou menos peso das mantas. Mas vinha o Verão e aqui a caloraça não perdoa.
Nos telejornais bem que falam em 35 graus para não assustar mas na verdade no pino do Verão a agulha bate sempre acima dos 40… upa, upa! Ora o Tê Zero que tinham era de ferro e sabiam que seria impossível dormir lá dentro com calor a dobrar. É então que o Toino tem uma ideia brilhante:
– Ó Baltar, atão e se fizéssemos uma casinhota de madeira… há por aqui caídas tantas tábuas e das boas… Fazíamos uma casa inda melhor que aquele trambeque de ferro!
– Pois, mas para isso precisamos de autorização do Chefe do Material, o Engenheiro Almeida, para nos servirmos das tábuas, pedir emprestado o sarrote, o martelo e pregos dos grandes.
Nesse momento começou uma zanga entre eles. Um dizia ao outro para ir pedir o material ao Engenheiro. Discutiam sobre quem ia quem.
– Toino, tu tens mais jeito que eu para lidar com essa gente finória! Eu cá ando sempre com a barba por fazer…
O Toino lá se decidiu que seria ele a falar com o Engenheiro, mas pôs condições:
– Eu cá vou falar com ele, mas tenho de treinar o que hei-de dizer ao gajo…
Assim foi. Todas as noites, junto ao contentor e competindo com a sinfonia da grilada do campo, o Toino inventava os gestos e as palavras que teria de usar, logo que batesse na porta do escritório do Engenheiro.
Ou por ser mesmo verdade, por travessura ou por sádica malvadez, o Baltar ia dizendo:
– Não tá bem, Toino… tens que ser mais forte, mais directo!
– Toino, porra, se falas assim, ele diz-te que estás com os copos!
– Olha, dessa maneira, o gajo pôe-te logo na rua!
Durante duas semanas foi assim o arrazoado: um falando, outro desfazendo…
Ao fim desse tempo, o Toino já andava danado, porque ainda não tinha encontrado o palavreado certo para conseguir o empréstimo do material.
Numa dessas tardes que por acaso já tinha passado pela Taberna do Filipe, encheu-se de nervo, vai direito que nem uma lança ao escritório do Engenheiro Almeida, entra de rompante, joga a boina num repente ao chão e diz… melhor, grita:
– Ó Chefe, só venho aqui pra dizer que faça o favor de meter no olho do c… o sarrote, o martelo e os pregos!… E aprovete, vá-se fo…. também!
Após este desaforo, sai num repente do escritório, pegando na boina caída no chão, deixando o Engenheiro de boca aberta, sem saber nem perceber patavina do que se passava! Que afinal nada se tinha passado…
O Toino chega a «casa» e conta ao Baltar o acontecido.
– Porra… e ele não te disse nada? Não te mandou prender?
– Nadaaaaa…
– Então é por que gostou! Temos de celebrar essa nossa grande vitória!
Derrubámos o Chefe! Ficou manso, o bicho…
– Tás cá um revolucionário, no fim és comunista…
Foram à mercearia da Ti Mariana e compraram duas garrafas de tinto de Reguengos, dessas com duas medalhas nos dizeres do papel colado, com mais de 14 graus…
Cantando e bebendo, lá foram pela estrada afora, seguindo em frente, aquela que vai dar ao Carregueiro, são 9 quilómetros e onde havia uma Estação de Caminho de Ferro para recolha da semente de trigo e ser transportado para as torres da Epac de Beja.
Com aquela pomada de Reguengos, ao fim de 2 ou 3 quilómetros, já a alegria era grande, sempre se sentindo vitoriosos da façanha do Toino!
– Ó Toino, és cá um grande revolucionário…!
Quase sem darem por isso, estavam na tal Estação CP do Carregueiro, já era noite.
Como a «bobadera» era grande, mal viram um vagão aberto, subiram para ele e assim adormeceram, sem conseguirem esvaziar as garrafas.
No outro dia acordaram já eram 10 horas. Sentia-se calor e olhando por uma e outra porta do vagão, apenas viram aqueles extensos campos amarelos já ceifados, apenas restolho…
– Ó Baltar, queres ver que o cambóio levou-nos para longe? Estamos em Espanha…
De repentemente, passa quase em frente deles um moiral com um rebanho de ovelhas e o Baltar pergunta:
– Ó Senhor espanhol, isto é Espanha? Estamos pierto de Sevilha?
– Isto aqui é o Carregueiro, seus bêbados dum cabrão!
Ganharam esta resposta, que mais esperavam?
«Estórias de um filho de Vale de Lobo e da Moita», crónica de José Jorge Cameira
Mais uma história, com graça e realidade. Triste para quem nada tem, vai “afogando” a tristeza, em bebida. A sua descrição, em várias passagens, é a realidade, das expressões usadas que, tanto podem ser de “alegria”, como o retrato da pobreza em extremo. Ao nos contar estas histórias e escrevendo, os diálogos das personagens, em português vernáculo, coloca-nos de certa maneira, mais dentro do cenário, onde decorre a acção. Parabéns José Jorge, continue, nunca deixe de escrever e de nos oferecer, histórias tristes ou alegres, fazem parte do quotidiano, das pessoas. Pessoas essas, que formam todas as regiões, com as tradições, que lhes são naturais. Um abraço amigo.