José Tosca, arraiano façanhudo, homem dos quatro costados, senhor de si e dos seus, deu brado por aquela coroa de povos de Riba-Côa e Beira-Serra.
Guedelha solta, cara bem talhada, pele tisnada pela resca e olhar de ratão, ei-lo de meanha estatura e genica que bonda para ninguém lhe pôr a mão em riba com cuidados em domá-lo. A ventura está-lhe no sangue, corre-lhe na mona o malucar constante em galgar o mundo à cata de fortuna. Preado contrabandista, feirão errante, lavrador das horas mortas, futriqueiro quanto baste para burlar e zombar do mais esperto dos comparsas. Um basófias de nomeada que conhece os caminhos chegados a Castela de lés a lés e se gaba à boca cheia de seus feitos e aventuras nas terras da raia. Ciente de responsabilidades, justo quanto basta, temente a Deus e ao Dianho, também é judeu no trato com quem o empulhe. Duas lérias mal mandadas, à maneira de chalaça, e logo trabalha a naifa ou a cacheira para domar e castigar o tratante.
Conta as suas estórias a quem passa e lhe dá um migalho de atenção, sentado num velho mocho, frente ao seu casebre, à gostosa soalheira. Salta à vista o ar farfante de quem se considera um herói da bárbara e agreste terra beirã. Senhor de manhas e artimanhas, pôs vulto em terras de Riba-Côa e fez-se notar, junto com outros tisudos arrraianos, no maralhal de gentalha anónima de que as rudes aldeias abarrotavam. Fala das façanhas como se as vivesse no momento e sente em si o orgulho das arteirices que armava, com o ar destemido de quem sabe que foi senhor do seu mundo.
Nos dias que correm, os povoados raianos estão desertos de gente. Restam apenas, em muitos, os vestígios de outras eras, o pardo casario de granito ou xisto, em ruínas, quelhas de piso maldanamoso, esbarrondado pelo farto correr das águas. Um desmazêlo. Já não soa o chirriar do antigo carro de madeira, o trautear das modas ao balanço de lutas e labutas, tão-pouco o ralhar dos feros lavradores tornando as juntas, nem o berregar desenfreado da canalha a jogar ao eixo e à cabra cega.
José Tosca, com suas facécias, faz renascer do borralho mortiço, ainda que por fugazes instantes, os tempos idos das aldeias perdidas em silêncios confrangedores, implorando vida e ardor. Ouvir estas lérias é recordar parte desse pequeno mundo venturoso e simples que a modernidade quase derriscou e que ainda não substituiu por mais feliz vivência.
Paulo Leitão Batista, «Aventuras de um velho contrabandista»
leitaobatista@gmail.com
Inicia-se agora no Capeia Arraiana a publicação de uma série de episódios, tipo folhetim, que constituem as «Aventuras de um velho contrabandista». Este primeiro acometimento afigura-se uma espécie de prefácio às estórias que se irão seguir semanalmente e que demonstram o espírito venturoso do arraiano José Tosca.
plb
linda historia, yo soy de Agentina y mi padre de Vale de Espinho, él solía contarme estas historias por que el también fue contrabandista y por lo que veo, es de la misma época.
Muito bom texto!!! Um potro por debastar, é o que lembra a descrição do José tosca! 😉