Fundada nos anos 80, a carpintaria do Alves produz móveis de cozinhas, caixilharia e outras utilidades em madeira. Foi sempre um exemplo de bem servir os clientes, de atender com simpatia e correcção a todas as solicitações e encomendas.
«Quando não é possível satisfazer, nem sequer se aceita a encomenda», diz o Alves, orgulhoso dos dois empregados que mantém há mais de 20 anos, sempre com os ordenados pagos a horas, a segurança social e os seguros em ordem, não vá o diabo tecê-las. É verdade que de há uns anos para cá as coisas estão cada vez mais difíceis, «vai-se vivendo, lá vai dando para a luz», mas não se permitem veleidades.
Até que há dois anos uma vizinha lisboeta, que só vem à terra de vez em quando, por birras antigas, «talvez por inveja, sabe-se lá», desatou a fazer queixa do barulho das máquinas, das inalações dos vernizes, do fumo do forno que queima a serradura e até do cão que ladra quando lhe apetece. Diz a vizinha que só descansará quando a carpintaria fechar portas!
A vida do Alves tornou-se um inferno. Ainda gastou uns trocos a construir uma estufa de pinturas para não incomodar a vizinha, deixou de trabalhar até mais tarde, mas de nada serviu. As denúncias continuaram. Em pouco tempo foi visitado pela inspecção do Ministério da Economia, pela inspecção do trabalho, pela GNR (duas vezes), pela fiscalização da Câmara, pela ASAE, pela inspecção do Ambiente (duas vezes, uma da delegação de Coimbra e outra de Lisboa). Nenhuma entidade encontrou deficiências ou infracções na carpintaria a não ser o Ministério do Ambiente. E não apenas uma, mas muitas. Desde logo a chaminé do forno que não cumpre os requisitos, era quadrada e devia ser redonda, além de que teria de dispor de medidor de emissões poluentes. Depois o registo da gestão de resíduos perigosos que não estava em ordem, porque o empresário ao usar embalagens de verniz (resíduos perigosos) deve obter um certificado da entidade a quem as entrega. A fossa séptica que recebe os efluentes da casa de banho não estava licenciada. De nada adiantou o Alves dizer e provar que a chaminé e o forno foram construídos há 20 anos, ao abrigo da licença da Direcção-Geral de Economia e de acordo com as exigências daquela altura; de apresentar uma declaração da Câmara Municipal referindo que esta levava as latas do verniz de 15 em 15 dias para Ecocentro; de alegar que o prazo para registo das fossas tinha sido prorrogado ou de alegar que o sistema informatizado de gestão de resíduos, pertença do Ministério do Ambiente, de alteração em alteração, não estava a funcionar.
Na sua honestidade de rural ainda foi dizendo que nem sequer queimava toda a serradura, porque alguma depositava-a num terreno de mato, sua propriedade, e os desperdícios de madeira iam para a lareira. Logo percebeu o erro da sua sinceridade, pela ameaça de mais uma contra-ordenação por rejeição de resíduos no solo, de imediato corrigiu: «Mas isso foi no princípio, agora não, queima-se tudo!»
Lá foram a Lisboa as testemunhas arroladas, ouvidas por um advogado que presta serviço para o Estado, certamente bem pago. Aguardou a decisão, uma eternidade, e recebeu há dias a notícia: «2 500 euros de multa! Aplicada apenas pelo mínimo, porque podia ter chegado aos 25 000 euros, era o que dizia a contra-ordenação! Estava preparado para fechar a porta.»
«Ainda me aconselharam a recorrer, garantiram-me que com um bom advogado, me limpariam tudo em Tribunal, mas deitei contas à vida, gastaria mais em custas e no advogado do que o valor da multa! Temos que sustentar esta cambada! Vá lá que ainda me facilitaram pagar em prestações!»
É assim que o País trata quem trabalha, obrigando-o a dar o litro, o Estado agarra-se-lhe que nem uma carraça, suga-o a até ao tutano, que o déficit a isso obriga. E não é apenas o Estado que parasita a economia, são também uma panóplia de outras entidades criadas ou estimuladas pelo Estado, consultoras, certificadoras, que emitem certidões de conformidade, que vendem serviços novos que o Estado inventa todos os dias, ou aplicações informáticas que apenas complicam a vida a quem produz.
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«Terras do Lince», opinião de António Cabanas
(Vice-Presidente da Câmara Municipal de Penamacor.)
Este artigo traz-me a infeliz lembrança do estado em que se encontra o nosso País e por consequência os nossos concelhos, Penamacor e/ou Sabugal em particular. Todas as entidades ou fundações serão necessárias, e se quisermos, sempre haverá mil razões e explicações para a existência destes organismos, mas a realidade é que as exigências de certos organismos estão a matar os produtos locais e o saber bem tradicional e antigo. como neste exemplo, quantos profissões artesanais não fecharam portas, porque estavam fartos de alimentar “papões” do estado? Vejo aquilo que se passa em França, onde se combate a falta de higiene dum restaurante, onde se faz guerra às condições mediocres de certas casas comerciais, mas onde se defende e tudo se inventa e tudo se faz para guardar e realçar os produtos locais e artesanais. Basta percorrer os mercados em qualquer parte de França e ver a importância que se dá aos produtos locais e regionais, mesmo se apresentados em bancas de cartão ou madeira, sem arcas frigorificas ou sem termómetros de temperatura. Em Portugal os comerciantes até têm medo de ter esquecido uma salada no seu registo de transporte …
Para regressar a este exemplo, é sempre mais fácil acusar e perseguir o pequeno e o honesto. Quando é que estas autoridades ou estes organismos, apresentam um ‘cartão vermelho’ ao estado, às câmaras, às juntas pelos seus projetos, sem pés nem cabeça, sem condições. A carpintaria Alves possui um forno e uma chaminé feita há vinte anos, que respeitava as normas da época e isto dá direito a multas e ameças jod sia de hoje. Hoje, em 2010, as câmaras adjudicam projetos de esgotos, (é apenas um exemplo bem real e triste), sem condições, sem licenças, sem espertos nem peritos para validarem os trabalhos, sem qualquer contrôle do que foi feito e ninguém é responsabilizado? Pobre País. Mais do que nunca, estou convencido que são estas palavras e artigos de uns e de outros, que farão com que as coisas mudem. Temos de ser nós a fazer mudar as atitudes autoritárias dos poderes existentes.
Um lagarteiro em Paris. Paulo ADÃO.