Há dias veio-me parar à mão a Lei da Passagem de Gado de 1564, uma interessante lei do tempo de D. Sebastião, sobre o contrabando de gado.
A Lei da Passagem de Gado de 1564 era muito equilibrada para o tempo. Estabelecia, mecanismos eficazes de controle, fiscalização e penas dissuasoras, ao mesmo tempo que protegia o pequeno produtor e incentivava a grande criação de gado:
a) Todas as pessoas moradoras nas terras dentro de dez léguas da raia, deviam escrever, de Abril até ao dia de S. João Baptista, todo o gado, à excepção das ovelhas, num livro camarário;
b) No ano seguinte, e nas mesmas datas, descarregariam o que vendessem ou lhes morresse e acrescentariam o que adquirissem por compra, herança ou criação;
c) Os lavradores que levassem os gados a pastar dentro ou fora dessas dez léguas, tinham de se acompanhar de uma certidão ou carta-guia do seu gado. E retornando, se o vendessem sem licença seriam indiciados como passadores;
d) Os lavradores de fora destas dez léguas que viessem com o seu gado pastar nelas, deviam também escrever os seus gados na sua câmara e fazê-lo acompanhar de carta-guia sob pena de serem indiciados como passadores. Quando regressassem, deviam descarregá-lo no mesmo livro, sob pena de serem indiciados como passadores.
e) Em caso algum, era permitido vender gado dentro dessas dez léguas sem prévia licença e descarrego no livros de assentos camarários;
f) Todos os livros de assentos deviam estar disponíveis e em ordem para serem fiscalizados pelos juízes do rei ou juízes de fora, que tinham o poder de proceder contra qualquer irregularidade ou falta detectada;
g) Estavam apenas isentas destas regras de registo as pessoas que não tivessem mais de duas reses ou vinte cabeças de gado miúdo e até cinco porcos;
h) As penas eram o confisco de todo o gado e de todos os bens móveis;
i) No caso de pastores ou maiorais que colaborassem na passagem de gado ou não denunciassem os amos, eram desterrados por dois anos para África;
j) Quem denunciasse a situação recebia como recompensa 1/3 dos bens confiscados;
k) Quem pretendesse comprar gado fora do lugar onde fosse morador, tinha de levar declaração de quanto gado ia comprar e depois registá-lo no livro, sob pena de ser indiciado como passador;
l) Quem pretendesse fazer varas de porcos, devia declará-lo até ao dia 15 de Setembro de cada ano nos livros da câmara, sob pena de ser indiciado como passador;
m) A partir de Junho, não se podia trazer com as ovelhas, borregos ou carneiros, salvo sementais ou capados, sob pena de se perderem metade para o denunciante e outra metade para a câmara;
n) Quem de cem vacas tivesse por ano cinquenta crias; de mil ovelhas, duzentas e cinquenta crias; de mil cabras, quinhentas crias, beneficiava, demonstrando o facto pelo registo no livro, gozavam do privilégio de não serem presos em ferros ou cadeia pública, bem como dos mesmos privilégios dos cavaleiros e de não sofrerem penas de açoite.
De facto, o contrabando na fronteira terrestre era geral de Norte a Sul e praticado desde fidalgos da casa real, até ao mais humilde lavrador, a ponto de, sendo o país grande criador de gado, haver no século XVI muita falta de carne, por causa dele.
O contrabando na raia, já era antigo e as primeiras notícias remontam ao tempo de Sancho II e prosseguiu, como sabemos, até aos nossos dias, mas foi mais importante nos séculos XIV a XVI.
Era essencialmente o gado e a moeda que saíam para Castela e os panos que entravam em Portugal.
A vigilância económica sobre estes espaços de fronteira, fossem eles rios, ou pontos de passagem (portos), cabia a várias instâncias: Autoridades territoriais (Alcaides das «terras dos extremos», e fronteiros) e homens do fisco (siseiros, dizimeiros ou portageiros) ou aos homens das sacas (alcaide das sacas, escrivão das sacas, rendeiro das sacas).
Os impostos a solver pelas transacções inter-fronteiriças eram as sisas, dízimos e as portagens e este direito aduaneiro estava consagrado nos forais antigos, nas ordenações e nas decisões das cortes.
As formas de controlar este contrabando que se fazia nas terras de fronteira, designadamente de gado, foram as mais diversas: Assentamento num livro camarário do número de cabeças de gado de cada proprietário; guias de marcha emitidas pelas autoridades municipais quando o gado se deslocava, licenças de venda, penas de confisco do gado e de bens móveis e de raíz, desterro para os pastores (decisões das cortes de Lisboa, Santarém e Torres Novas).
As justiças, neste caso eram bastante rigorosas, havendo por vezes, excesso de zelo das autoridades, que muitas vezes, além de corruptas, por manobras espoliadoras, muitas vezes atropelavam as regras processuais e os direitos individuais.
Um tal Luis Gonçalves, da Reigada, quis ir comprar ovelhas de criação à Guarda, informando os juízes do lugar de que ia buscar gado, para depois lhe fazerem o assento no livro da câmara, conforme impunha a lei.
Na Guarda foi assaltado, não chegando a comprar qualquer cabeça e mesmo assim foi acusado de passar gado. Refugiando-se numa Igreja, os juízes foram buscá-lo e mantiveram-no em cativeiro um mês. Saíu porque os vigários da Guarda cominaram com as censuras eclesiásticas os juízes. Já em casa, o juiz prendeu-o e deixou-o a penar mais mês e meio no cárcere, onde gastou tudo o que tinha, até que fugiu.
Tais situações originavam sucessivas queixas ao rei, como a do povo da comarca da Beira a D. Afonso V, que acusava os oficiais das sacas de se «regerem por afeições» e não pelo cumprimento da Lei, o que levava o rei a conceder várias amnistias colectivas, como a que concedeu aos moradores de Castelo Rodrigo.
As medidas consagradas nesta célebre lei extravagante, que respondia ao fenómeno do contrabando de gado na raia, demonstra bem a dimensão que este atingiu no século XVI.
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente
Bom texto, aprendi muito.