Nuno de Montemor, sendo sacerdote, submeteu a sua escrita à austeridade própria da Igreja. Comprometeu-se mesmo, segundo uma sua confissão, com o chamado romance católico. Mas a sua principal marca é a evocação da vida dura e difícil dos pobres, que comiam a côdea do pão que o diabo amassou.
Num sentido mais lato, a prosa e a poesia que Nuno de Montemor produziu abundantemente ficou agarrada à expressão da pureza sentimental, do amor filial a Deus, da união familiar e da expressão humilde e fraternal do povo simples que sempre evocou. Romances como «A Paixão de uma Religiosa», «O Irmão de Luzia» e «A Maior Glória», trilogia em que evoca o valor dos votos eclesiásticos, são exemplos dessa confessada e empenhada apologia da pureza sentimental e da exaltação do sacrifício em nome do Divino. Mas, para além desta restrição, há nos seus livros um enquadramento social onde se evoca a vida, a natureza e os sentimentos humanos, descritos numa linguagem primorosa.
Ainda que arredado da tribuna que os críticos de serviço dão aos mestres da nossa literatura, a escrita do autor quadrazenho continua a estar presente entre o melhor que se produziu literariamente em Portugal.
O seu livro melhor dedicado ao povo, que empenhadamente cantou, foi «Rapazes e Moças da Estrela», onde pinta quadros notáveis com as vivências populares, nas suas virtudes e misérias. Diremos até que aqui o autor fugiu às grilhetas do dever católico e, tornado mundano, mas sem perder o horizonte de Deus, foi ao encontro do povo, na sua mais genuína expressão.
O povo que Nuno de Montemor nos revela, é um povo heróico e sofredor, vivendo a via-sacra da vida, sujeito às mais variadas contrariedades. Uma delas é a fome. Uma fome lancinante, reflexo de uma pobreza extrema, de gente abandonada, dependente unicamente de si e de Deus.
Vejamos o caso de Guida, uma criança pobre e órfã de pai, que, faminta, é recolhida por gente remediada, que por ela se enternece:
«- Tu querias jantar connosco, aqui, nesta varanda?
– Ah! Isso queria…
E lançou os olhos gulosos a uma larga bandeja de prata, onde havia pãezinhos alvos, bolos doirados e frutas.
– E posso comer aquilo tudo?
– Pois podes…
– Eu nunca provei aquelas coisas boas. Os pedreiros é que, às vezes, me dão umas coditas de broa, que me guardam, já duras, no bolso.
– Pois jantas cá… – assentiu D. Márcia».
Vem este trecho no conto «A Guida», que tem por pano de fundo a vida de uma criança pobre e o amor de uma mãe inconformada com a distância que as separa.
Noutro fragmento vamos encontrar crianças igualmente pobres e famintas que são convidadas a passar por casa de pessoa remediada:
«- A gente não quer enfadar… – murmurava, encolhidamente, o António.
– Qual enfadar, qual diabo! Batatas, pão e caldo há sempre que farte, e também por lá temos coisas doces… Ide por lá, pois então!…
E a todos envolvendo nos seus longos braços, metia-se no meio deles, e levava-os às padarias mais próximas:
– …Enchei a barriga e os bolsos, à vontadinha… e levai à vossa mãe este pão mais fino e bolos…»
Consta esta segunda passagem no conto «O Tio Barata e o Tio Limão», que retrata duas figuras da aldeia, ambos tendo a cargo uma rodada de sobrinhos. O Barata é rico, mas avaro, e os seus sobrinhos passam fome e vivem na miséria. Já o Limão não tem o pecúlio do seu comparsa e rival, mas tira prazer da vida gastando o que tem nas coisas necessárias a uma boa vivência.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
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